Esterilização forçada de pessoas com deficiência intelectual avança na Câmara

02 de setembro, 2024 Projeto Colabora Por Micael Olegário

Entidades da sociedade civil repudiam PL 5.679/23, consideram projeto higienista e indicam risco de aumento da violência de gênero

Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados busca estabelecer a esterilização forçada de pessoas com deficiência intelectual mediante autorização judicial. O PL 5.679/2023 passou na comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e prevê a possibilidade de realização do procedimento após consulta ao Ministério Público (MP). Entidades da sociedade civil e especialistas apontam caráter higienista e risco de estímulo à violência, principalmente, contra mulheres com deficiência.

Apresentado pelas deputadas Carmen Zanotto (Cidadania/SC) e Soraya Santos (PL/RJ), o PL procura consolidar a possibilidade da esterilização, que já é prevista na Lei do Planejamento Familiar, mas ainda não possui regulamentação e, portanto, não poderia ser colocada em prática. A medida também daria prioridade para a realização de cirurgias de laqueadura e vasectomia em pessoas com deficiência (PcDs) intelectual.

A nova legislação, portanto, daria a possibilidade de colocar em prática a esterilização em pessoas “absolutamente incapazes” (que não possuem condições de discernir ou responder por seus atos). No caso do PL, pessoas com deficiência intelectual ou mental poderiam ser consideradas desta forma. Atualmente, apenas menores de 16 anos são considerados incapazes perante a legislação brasileira.

Segundo o relator da proposta na comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), a medida daria mais segurança para um grupo da população que é mais vulnerável a violências e complicações na gravidez e parto. “A aprovação deste projeto é essencial não só para trazer mais segurança às pessoas com deficiência, com a oitiva obrigatória do Ministério Público nos processos de esterilização, mas também para conferir eficácia ao dispositivo legal já existente”, escreveu Aureo em seu parecer.

“A ideia é que se a pessoa for abusada, tudo bem, mas pelo menos que ela não venha a gestar, gerar um fruto indesejado de uma relação que vai ter que ser mantido pelo Estado e pelos pais”, disse Luana Adriano Araújo, Diretora Jurídica da Abraça.

O PL 5679/2023 será agora analisado pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF). Logo após a aprovação na primeira das etapas de tramitação, a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) publicou nota contra a proposta, denunciando representar uma afronta aos direitos humanos de PcDs e à Lei Brasileira de inclusão (LBI).

De acordo com a entidade, o PL ainda pode agravar a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, uma vez que prevê eliminar o “risco de gravidez” após uma violência. “É um projeto que, sob o pretexto de proteger pessoas com deficiência de alto nível de suporte (mental, intelectual, etc), acaba, na verdade, promovendo um processo de higienização contra pessoas com deficiência. A isso chamamos eugenia”, afirma o texto da Abraça.

O projeto aguarda a indicação do relator na CPASF exatamente no momento em que o país acompanha os Jogos Paralímpicos de Paris 2024, do qual participam atletas com deficiência intelectual – o Brasil tem, em sua delegação, pessoas com paralisia cerebral que estarão na disputa por medalhas em competições de atletismo, natação e tênis de mesa. Entre os atletas brasileiros, estão as gêmeas paranaenses Beatriz e Débora Borges Carneiro, ouro e prata no Mundial de Natação Paralímpica de 2023 nos 100m peito e a velocista baiana Samira da Silva Brito – com problemas de audição e fala provocados pela paralisia cerebral – que ganhou medalha de prata nos 200m rasos no Parapan de Santiago 2023.

Mulheres com deficiência sofrem mais com violência

De acordo com dados da última edição do Atlas da Violência, as pessoas com deficiência (PcDs) intelectual sofrem três vezes mais com a violência em relação a outros grupos de PcDs. Em todos os critérios, as mulheres são mais afetadas que os homens e, quando se tratam de mulheres com deficiência intelectual, a diferença é ainda maior: 57,2 casos a cada 10 mil habitantes para o sexo feminino e 18, considerando o sexo masculino.

Apesar do PL 5679/2023 não fazer distinção entre homens e mulheres. Na prática, considerando os dados da realidade brasileira, a legislação afetaria majoritariamente os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres com deficiência. “A esterilização forçada não previne e nunca preveniu a violência, podendo, inclusive, vulnerabilizar ainda mais os sujeitos com deficiência”, acrescenta a nota da Abraça. O texto menciona dados de 2021 do Sinan, indicando que 7 mulheres com deficiência sofrem violência sexual por dia no Brasil.

Outro ponto polêmico está na correlação feita entre deficiência e incapacidade, um entendimento que retira a posição de sujeitos de PcDs e contraria a LBI. Pesquisadora com ênfase em estudos da deficiência, gênero e mercado de trabalho, Luanda Botelho, explica que existem duas abordagens para se analisar o projeto: a sociológica e a jurídica.

Do ponto de vista legal, a professora de Instituições de Direito e Relações Trabalhistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pontua que o PL é inconstitucional, considerando o que foi estabelecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. “Vale ressaltar que a Lei Brasileira da Inclusão respeita os termos da Convenção e reforça enfaticamente em seu art. 6º que a deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa para preservar sua fertilidade”, destaca Luanda, mulher usuária de cadeira de rodas e doutoranda em Ciências Sociais.

Vice-procuradora-geral do Trabalho em Brasília, Maria Aparecida Gugel concorda com a pesquisadora e descreve o ataque contra a dignidade de mulheres com deficiência que caracteriza o PL. “São as pessoas com deficiência que decidem o que fazer de suas vidas, inclusive quanto à sexualidade e ao direito reprodutivo. Se, por razão de incompreensão, não puderem decidir, deverão ser apoiadas para tomar a decisão”, explica. Diferente de uma tutela, a decisão apoiada ocorre quando uma pessoa de confiança (geralmente pai ou mãe) se compromete diante do Ministério Público a apoiar as decisões de uma PcD.

De acordo com a avaliação feita por Maria Aparecida Gugel, o projeto pode aumentar o risco de violências contra mulheres, com o agravante de promover um procedimento proibido no Brasil há muito tempo, a esterilização forçada. “As mulheres com deficiência já sofrem múltiplas formas de discriminação e estão sob maior risco de violência, inclusive meninas com deficiência em seus próprios lares”, lembra a procuradora e membra da Associação Nacional dos(as) Membros(as) do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência (Ampid).

Diretora jurídica da Abraça, Luana Adriano Araújo aborda o contexto histórico de legislações sobre o corpo das mulheres que afetam PcDs e chama atenção para o paradoxo de proteção promovido pelo PL. “A ideia é que se a pessoa for abusada, tudo bem, mas pelo menos que ela não venha a gestar, gerar um fruto indesejado de uma relação que vai ter que ser mantido pelo Estado e pelos pais”, complementa Luana, doutora em Direito pela UFRJ.

Acesse a matéria no site de origem.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas