Frentes parlamentares articulam lobby antiaborto no Congresso

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Foto: Mídia Ninja

05 de setembro, 2024 AzMina Por Jane Fernandes

Unidos pela afinidade de causas ou pelo jogo de interesses, deputados e senadores fortalecem coalizão contra os direitos reprodutivos

Combater a interrupção de uma gravidez e evitar a legalização desse procedimento são as principais finalidades da Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida. A ata de fundação não menciona as situações nas quais a legislação prevê o aborto legal – gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia -, sugerindo que o grupo se opõe também a esses casos.

A criação da Frente contra o Aborto foi assinada por 198 parlamentares, exatamente o número necessário para sua instalação na legislatura em andamento (2023 – 2026), mas atualmente é formada por 171 deputados e 10 senadores.

As frentes parlamentares são definidas pela Câmara dos Deputados como “associações de parlamentares de vários partidos para debater sobre determinado tema de interesse da sociedade”. Mas o conceito é insuficiente para entender como elas se articulam e a quem realmente atendem. “Não necessariamente quem assina (uma frente) está alinhado com a causa, pode estar fazendo um jogo”, comenta Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e doutora em Ciências da Comunicação.

No jogo mencionado por Magali está a troca de favores, uma prática recorrente na atividade parlamentar, não só para a criação de frentes. A ‘moeda’ da negociação é variável, pode ser a assinatura para viabilizar a instalação da frente proposta por outro deputado ou a votação favorável de um projeto, entre outras motivações.

A deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) coordena a Frente contra o Aborto pela segunda legislatura consecutiva e é autora do Projeto de Lei 2.893/19, para retirar as possibilidades de aborto legal do Código Penal. Ela argumenta que permitir o aborto quando a mulher engravida após um estupro seria punir o feto pelo crime praticado por outra pessoa, sem se importar com o que significaria uma vítima de estupro seguir com o resultado daquela violência.

Chris Tonietto tenta invalidar o argumento de risco à vida da gestante e afirma que “o objetivo de se manter a impunidade em tal caso é única e exclusivamente ocultar os verdadeiros e inconfessáveis motivos do aborto”. Mas as evidências científicas mostram o quanto ela está equivocada. O Portal de Boas Práticas da FioCruz aponta que em casos de hipertensão pulmonar, por exemplo, o risco de morte materna na gestação chega a 70%.

Vários participantes da Frente são publicamente contrários aos direitos reprodutivos, como o seu vice-coordenador, Nikolas Ferreira (PL-MG), mas nem todos se posicionam dessa maneira. As bancadas suprapartidárias – entre as mais conhecidas estão as bancadas ruralista, a da bala e da Bíblia – são formadas por parlamentares ligados à temática que os reúne, e não têm registro formal na Câmara, enquanto as frentes podem ter uma composição mais diversa.

Prestígio político entre os ganhos

O perfil heterogêneo das frentes é resultado das regras de criação. Pelo menos um terço dos integrantes do Congresso Nacional, somando deputados e senadores, precisam assinar o requerimento. Um exemplo é a Frente Parlamentar Evangélica – também contrária ao aborto -, que tem dezenas de católicos e até pessoas sem religião, segundo a plataforma Religião e Poder do ISER, que mapeia a identidade religiosa de parlamentares.

“Claro que é interesse dos parlamentares de uma frente contra o aborto, por exemplo, convocarem parlamentares mais de direita e de centro-direita para ampliar as suas alianças políticas dentro do Congresso”, diz Clara Wardi, pesquisadora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).

A Frente Parlamentar contra o Aborto, na atual legislatura (57ª), tem apenas um integrante de partido de centro-esquerda: Max Lemos (PDT-RJ). Entre 2019 e 2022 (56ª legislatura), havia representantes do PT, PV e do PDT. Vale observar que filiação partidária não define posicionamento sobre a interrupção da gestação. Por exemplo, a primeira frente contra o aborto foi criada por Luiz Bassuma, então do PT-BA, em 2005.

As frentes usam a estrutura física da Câmara dos Deputados, mas não têm sede, nem podem usar recursos do parlamento de forma extensiva, explica a cientista política Marina Brito. O ganho se traduz na soma dos recursos de cada parlamentar, “sejam técnicos de assessorias, sejam de prestígio político, redes de relacionamento ou mesmo econômicos”, completa. A divulgação de suas ações nas mídias da instituição é outra vantagem.

“É inegável que a ação articulada e o reconhecimento formal dão visibilidade a certos temas e podem contribuir para alavancar o debate em torno deles no Congresso”, analisa Marina, acrescentando que participar de uma Frente também pode ser uma forma de responder a demandas que alguns parlamentares recebem de seu eleitorado.

Estratégia de fortalecimento

Clara Wardi, do CFEMEA, percebe um papel de fortalecimento de alianças nas frentes religiosas e contra o aborto, com alcance além da votação de projetos de lei (PL). Os parlamentares atuam conjuntamente na articulação e votação de requerimentos de audiências públicas para debater o aborto, na coautoria de PLs e também em moções de repúdio, por exemplo.

Uma audiência deste tipo ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a votação da ADPF442, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para descriminalizar o aborto até 12 semanas de gestação. E quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) proibiu os médicos de realizarem assistolia fetal (procedimento para o aborto) em gestações a partir de 22 semanas. O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a resolução do órgão.

O PL 1904/2024, também conhecido como PL do Estupro, que propõe equiparar o aborto a partir de 22 semanas ao homicídio, é um caso exemplar de reunião para assinatura massiva de um projeto. Retirado da pauta após forte mobilização social, a proposição foi apresentada originalmente pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) e 31 coautores. Sóstenes participa atualmente das frentes Mista Contra o Aborto, Evangélica e Em Defesa da Vida e da Família.

Entre os demais parlamentares que assinam o PL 1904 – com 53 coautores, em 21 de agosto de 2024 -, apenas 5 não fazem parte da Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida. Quatro estão nas frentes Católica ou Evangélica, e somente a deputada federal Ely Santos (Republicanos-SP), que assumiu o mandato como suplente em julho de 2023, não estava em nenhuma frente antiaborto quando assinou o projeto.

Outras frentes antidireitos

O combate aos direitos reprodutivos é também reforçado pela Frente Evangélica, Frente Católica Apostólica Romana e Frente em Defesa da Vida e da Família. Embora não citem o aborto nos seus estatutos, as três frentes foram articuladas por deputados que demostram a posição contrária à interrupção da gestação em seus discursos e propostas legislativas.

Eli Borges (Solidariedade – TO), atualmente em licença do mandato, assumiu a presidência da Frente Evangélica no dia da instalação. Ele foi o segundo parlamentar que mais falou contra o aborto na tribuna da Câmara entre 2019 e 2023, conforme levantamento d’AzMina. Desde junho, o grupo é coordenado por Silas Câmara (Republicanos-AM), que assina a PEC 29/2024, proposta de alteração da Constituição para transformar a concepção (fecundação) em marco temporal da vida. Hoje, não há consenso, nem definição em lei, sobre o momento em que se inicia a vida. Essa proposta inviabilizaria qualquer aborto, mesmo em caso de estupro.

Eros Biondini (PL-MG) é o coordenador da Frente Católica e está entre os coautores da PEC 29/2024 e do PL 1904/2024. Em discurso realizado na Câmara, representando a Frente, em abril de 2020, o deputado convocou os ouvintes a: “lutar contra o aborto, contra a pedofilia, contra a liberação das drogas”.

A Frente em Defesa da Vida e da Família é coordenada por Diego Garcia (PODEMOS-PR), que está em seu terceiro mandato. Ele apresentou uma série de propostas legislativas relacionadas à interrupção da gestação, como as moções de repúdio à “decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), que autorizou o aborto de um bebê diagnosticado com a síndrome de Edwards”. O parlamentar desconsidera que fetos nessa condição não sobreviveriam fora do útero.

Os coordenadores das três frentes citadas também participam da Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida, comandada por Chris Tonietto, líder em discursos contra a interrupção da gestação na tribuna da Câmara. Ela apresentou 16 projetos de lei no atual mandato, iniciado ano passado.

Um deles, o PL 349/2023 propõe tipificar como crime “a venda, a exposição à venda, o oferecimento, o transporte, o armazenamento e a entrega de produto que possua efeito abortivo, sem permissão competente destinada a fins terapêuticos ou medicinais”. O projeto está parado na Comissão de Comunicação da Câmara desde março de 2023.

A proposta é inócua, já que o misoprostol, principal medicamento usado para interrupção da gestação, é um dos remédios mais regulados do Brasil, apesar de seu uso ser considerado seguro pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ele é classificado pela Anvisa como substância de compra e uso restrito a hospitais. Desta forma, sua comercialização já caracteriza crime contra a saúde pública, conforme o artigo 273 do Código Penal.

A realização de sessões solenes é outra estratégia da presidente da Frente contra o Aborto para manter o tema no radar. Após conseguir 95 assinaturas no REQ 1390/2024, Chris Tonietto comandou uma homenagem ao movimento pró-vida em junho deste ano. Ela já apresentou o requerimento para homenagear o dia do nascituro (8 de outubro), repetindo a sessão que tem feito nos últimos anos.

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