Miguel, uma criança negra de cinco anos, morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo, no Recife. O fato de sua morte seguir reverberando sem resposta satisfatória do Estado Brasileiro é sinal de uma sociedade enferma, que tem se recusado a revisitar os parâmetros que realmente importam
Dar às coisas o nome que elas têm. Além de um imperativo da vida em sociedade, é uma indicação do valor do que está em jogo. Por outro lado, a busca de argumentos ancorados em um saber situado exclusivamente no registro técnico pode até pôr fim à demanda, mas nem de longe efetiva a fruição de direitos.
A jurisprudência brasileira tem sido pródiga em recrutar pesos e medidas desproporcionais. O caso Miguel, que completou quatro anos sem desfecho definitivo, atesta essa lógica de modo evidente. Mais um menino negro cuja existência foi assinalada com a marca do desvalor. Mais uma mãe negra de quem se exige resiliência para seguir com o processo judicial.
No dia 2 de junho de 2020, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, acompanhava sua mãe Mirtes na jornada de trabalho pois, não esqueçamos – era pandemia. E, para as domésticas, home office se traduz de outro modo. Com as creches fechadas, muito embora o trabalho doméstico não tenha sido considerado como essencial, Mirtes seguiu trabalhando presencialmente, para não perder o emprego.
Miguel morreu após cair do 9º andar de um prédio de luxo, no Recife. Em uma situação que contraria qualquer lógica de cuidados com uma criança – portanto, estamos lidando com um fato evitável – Miguel foi colocado sozinho em um elevador pela empregadora de sua mãe. O “combinado” era outro – enquanto Mirtes passeava com o cachorro da patroa, essa mesma cuidaria de Miguel. Parecia uma relação de ganha-ganha, mas a desigualdade uma vez mais se impôs.
Aqui não pretendo discutir os meandros processuais envolvendo essa demanda. Quero é chamar atenção para o valor arbitrado para a vida humana. A patroa segue respondendo o processo em liberdade. A família de Miguel soma reveses jurídicos. O último deles, vindo do Superior Tribunal de Justiça, suspendeu a ação que determinava o pagamento de indenização de R$ 1 milhão, imposta aos ex-patrões de Mirtes.
Em decisão de quatro páginas, datada de 6 de setembro último, o STJ, na figura do ministro Bellizze, sob o argumento técnico de conflito de competência, entendeu que o pedido de danos morais não teria relação direta com o contrato de trabalho entre a mãe do menino e a ex-empregadora.
De fato, passear com o cachorro da patroa não é função albergada nas tarefas do emprego doméstico. É sim a desnaturação do escopo de trabalho, que só reforça a configuração do quadro frequente de abusos contratuais a que estão submetidas tantas mulheres negras – e, novamente, aqui nos encontramos de frente com as interseções de gênero e raça.
Isso evidencia ainda a inversão de valores e o fosso em que se situa a massa de trabalhadoras domésticas brasileiras – a mãe da criança não pode cuidar do seu próprio filho, pois os imperativos da sobrevivência fazem com que se submeta a trabalhar em condições impróprias que impactam, inclusive, suas funções parentais. A tutora do cão não pode cuidar do seu próprio animal de estimação, pois os imperativos da vida – no caso em questão, resumidos a “fazer as unhas”, tomam o espaço para se implicar com o que dá trabalho.