Conselhos de medicina atuam no lobby antiaborto

03 de outubro, 2024 AzMina Por Ana Rita Cunha, Jane Fernandes e Joana Suarez

Entidades restringem avanços em saúde reprodutiva e chegam a processar médicos que realizam abortos legais

Perseguição a médicos, acesso ilegal a dados de pacientes e sindicâncias atropeladas. Essas são as suspeitas que pairam sobre conselhos de medicina do Brasil nos últimos cinco anos, envolvendo processos contra médicos que fazem aborto legal. Com conselheiros antiaborto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) ampliou a atuação relacionada aos direitos reprodutivos, e emitiu resoluções com retrocessos para a saúde das mulheres e pessoas que gestam.

“Não se trata de um movimento recente, somente da era bolsonarista”, explica Sonia Corrêa, diretora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW na sigla em inglês). A relação entre o movimento antiaborto e profissionais de saúde aparece já na década de 1970 como reação às leis que ampliaram o direito à interrupção da gestação. “Tem raízes profundas em um enorme trabalho das forças antiaborto junto ao setor dos médicos nos últimos 40 anos”, conclui Sônia.

A posição contrária ao aborto, mesmo nos casos previstos em lei, pode não ser novidade entre a classe médica, mas a guinada do Conselho Federal de Medicina e algumas unidades regionais, após a vitória do ex-presidente Jair Bolsonaro, é evidente. Enquanto a gestão atual da entidade tenta restringir ainda mais o acesso ao procedimento, em 2013, uma nota emitida pelo CFM e os 27 Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) defendia a plena autonomia para a mulher abortar até a 12ª semana de gestação.

Cristião Rosas, ginecologista obstetra, representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir, considera a atuação antiaborto uma deturpação da função dos conselhos profissionais. “Eles deveriam se basear nas melhores evidências científicas e nas práticas internacionais para definir as normas da profissão”. O médico considera que não é papel de um conselho de medicina “restringir direitos reprodutivos estabelecidos há mais de 80 anos”.

O tabu e o preconceito geral em torno do tema no Brasil impedem a escolha e o uso  de tratamentos mais seguros em situações de aborto. Isso faz com que toda pessoa que enfrente um aborto no início de uma gravidez – espontâneo ou provocado – acabe tendo o direito à saúde violado.

Problemas para a saúde da mulher

O médico Raphael Câmara Medeiros Parente é um dos personagens-chave para entender a mudança de rota das entidades médicas contra o aborto (veja mais na arte abaixo). Ele foi reeleito este ano (2024) no CFM e atuou como secretário no Ministério da Saúde durante o governo de Jair Bolsonaro. Há alguns anos, o ginecologista trabalha fortemente para restringir o acesso ao aborto legal.

A resolução do CFM que proibia a indução de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro foi suspensa em maio de 2024 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dois meses após o texto relatado por Raphael Câmara. O ministro Alexandre de Moraes afirmou que o CFM ultrapassou sua competência regulamentar, impondo uma restrição de direitos não prevista em lei, “capaz de criar embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres”.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) afirmou que a resolução do CFM vai contra as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) destacou que as pessoas mais impactadas pela resolução são meninas com menos de 14 anos estupradas.  Em 2023, 54 mil meninas de até 14 anos foram vítimas de estupro, segundo dados do Anuário do ​​Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Resposta do Cremerj: Em nota, o Conselho Regional do Rio de Janeiro informou que “atua estritamente em favor do cumprimento da lei e do Código de Ética Médica“. O conselho não comentou sobre a resolução de 2019 obrigando a notificação compulsória de casos de estupro, mas afirmou que está à disposição dos médicos para esclarecer “alguma dúvida relacionada ao exercício legal da medicina“.

EUA percebe impacto na proibição

Os problemas no atendimento médico a mulheres por conta de um aborto, provocado ou espontâneo, estão no centro das discussões eleitorais nos Estados Unidos (EUA). Em junho de 2022, o aborto voltou a ser regido por leis estaduais no país, após passar quase meio século legalizado nacionalmente.

Uma sondagem realizada em abril de 2024 no país indicou que 46% dos eleitores conhecem episódios de mulheres que necessitaram fazer o aborto por complicações na gravidez e tiveram que cruzar fronteiras estaduais. O último caso que chegou à Suprema Corte reuniu juízes democratas e republicanos (partidos americanos) cobrando explicações ao estado de Idaho por negar o procedimento a uma mulher com sangramento incontrolável após o rompimento prematuro da bolsa.

A morte de Larissa Vitória de Souza Pereira no Rio de Janeiro em junho de 2024 mostra que a sociedade brasileira também precisa observar a extensão dos impactos da criminalização do aborto. A jovem de 18 anos sofreu um aborto espontâneo aos 4 meses de gestação e morreu no Hospital Rocha Faria após uma curetagem.

A família disse ao site G1 que o intestino dela foi perfurado durante o procedimento, e a Secretaria Municipal de Saúde informou que apuraria o caso. AzMina questionou o estágio atual do levantamento à assessoria de comunicação da pasta, por e-mail, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.

Tratamentos não avançam pela criminalização

A curetagem é uma técnica ultrapassada e desaconselhada pela OMS há mais de dez anos, mas ainda muito utilizada no Brasil, em 90% dos atendimentos de situações variadas de aborto, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). “A dilatação e curetagem (D&C) é um método obsoleto de abortamento cirúrgico e deve ser substituído pela aspiração a vácuo ou pelos métodos farmacológicos”, instrui o manual “Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde”, da OMS, editado no Brasil em 2013.

Em 2023, 133 mil pessoas foram internadas para fazer uma curetagem pós-abortamento no Brasil, conforme o Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS) do Ministério da Saúde, e 38 morreram. Já a Aspiração Manual Intra-uterina (AMIU) pós-aborto foi a opção utilizada em 19 mil internações, seguida de uma morte.

Além de ser mais doloroso para a mulher, por ser uma cirurgia invasiva, o método de curetagem oferece mais riscos de perfuração uterina, hemorragia, infecção e óbito. “As taxas de complicações importantes com a D&C (dilatação e curetagem) são duas a três vezes mais altas do que com a aspiração a vácuo”, aponta o manual da OMS. A recuperação após AMIU também é mais rápida e provoca menor perda de sangue, segundo estudo citado pela entidade.

O aborto medicamentoso é praticamente inacessível para as brasileiras, mesmo sendo considerado mais seguro pela OMS. Nem mulheres que sofrem abortos espontâneos incompletos – de gestações desejadas – possuem acesso ao misoprostol (conhecido por Cytotec), medicamento abortivo que poderia ser utilizado no conforto de casa. Ele foi descoberto pelas brasileiras na década de 1980 e está trancado a sete chaves desde os anos 1990, pois só é permitido o uso hospitalar no Brasil.

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