A campanha de desinformação e discurso de ódio que se seguiu à execução a sangue frio de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, significou, para a família da vereadora, uma segunda tentativa de assassinato — desta vez, de sua memória e legado. Seis anos e sete meses depois, os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, acusados de serem os executores da emboscada, vão a júri popular nesta quarta-feira (30).
O julgamento de um crime que parecia sem solução trouxe à tona, mais uma vez, o quanto as informações falsas e os ataques à política carioca — como os conteúdos que falsamente a associavam ao crime organizado — representam também uma tentativa de apagar sua memória e de desestimular a presença de outras mulheres, especialmente mulheres negras, em espaços públicos.
Com a chegada do júri popular dos acusados Lessa e Queiroz, o Instituto Marielle Franco alerta para a possibilidade de uma nova onda de desinformação, com potencial para distorcer a imagem de Marielle e comprometer a compreensão do caso. “Sabemos que as informações falsas e cruéis que surgiram no momento seguinte à execução tiveram um alcance exponencial, com uma grande teia de interfaces de várias plataformas disseminando fake news simultaneamente”, informou o Instituto. Em nota, ressaltou a importância de as pessoas se informarem sobre o caso em canais de confiança.
Para entender quais os possíveis impactos da desinformação no julgamento e na percepção do júri a Lupa ouviu o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), que assiste a família de Marielle no caso; o Instituto Marielle Franco, que desde 2019 atua no combate às fakes e na preservação da memória sobre a história, a trajetória e a vida da vereadora; e a defesa dos acusados de execução do crime.
Para MP, desinformação em massa sobre o caso não deve afetar avaliação do júri
O julgamento dos acusados de serem os executores do crime começa a partir das 9h desta quarta-feira (30) no 4º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. O júri popular é formado por um juiz de direito, que preside a sessão, e 21 jurados — cidadãos comuns, sem antecedentes criminais e sem graduação em Direito, selecionados por sorteio. Destes 21, apenas sete irão compor o conselho de sentença responsável por decidir a pena. Os jurados permanecerão incomunicáveis entre si e com outras pessoas para evitar qualquer interferência no veredicto.
Em nota à Lupa, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), responsável pela acusação, afirmou que, apesar das campanhas desinformativas, “confia na capacidade dos jurados de avaliarem com isenção toda a prova produzida, julgando de acordo com o contido nos autos, acolhendo a denúncia em toda a sua extensão e condenando os acusados por todos os crimes praticados”.
Segundo o órgão, embora tenham sido veiculadas muitas informações falsas sobre o caso — na Lupa, foram ao menos 30 verificações desmentindo boatos —, especialmente no início das investigações, “provas técnicas angariadas pelo MPRJ em conjunto com os órgãos policiais foram capazes de demonstrar cabalmente todas as acusações formuladas contra Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, o que, inclusive, refletiu em suas escolhas de figurarem como réus colaboradores”. Lessa aceitou colaborar com a investigação em março deste ano, depois que Queiroz o entregou como o executor dos assassinatos.
O MPRJ criou, em março de 2021, uma força-tarefa do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado para o caso Marielle Franco e Anderson Gomes (GAECO/FTMA). Desde então, tem atuado nas investigações sobre o crime e é o responsável pela acusação — durante o julgamento, ouvirá sete testemunhas, entre elas a única sobrevivente do atentado, Fernanda Chaves, ex-assessora de Marielle.
Na última terça-feira (29), o GAECO/FTMA informou que vai pedir a condenação máxima para os réus. Caso o júri acolha, Lessa e Queiroz podem ser condenados a 84 anos de prisão em regime fechado.
Vale pontuar que os acusados de serem os mandantes do assassinato, Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCE-RJ); e Chiquinho Brazão, deputado federal (sem partido); são julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Além dos irmãos Brazão, o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Rivaldo Barbosa, também está sendo julgado pelo STF. Ele é acusado de ter usado sua posição para dificultar as investigações.
“Marielle foi revitimizada inúmeras vezes”
Para o Instituto Marielle Franco, o julgamento desta quarta é uma chance histórica para o Brasil fazer justiça. “A falta de respostas e responsabilização nesse caso emblemático tem funcionado como um aval para a repetição de atos semelhantes e a perpetuação do racismo, do sexismo, da LGBTfobia e da violência contra defensores de direitos humanos, em especial as mulheres negras, que são vítimas sistemáticas da violência política de gênero e raça no Brasil” disse, em nota, à Lupa.
Os conteúdos desinformativos contra Marielle disseminados nos últimos anos foram uma forma de revitimizá-la, alega o instituto. “Marielle foi revitimizada inúmeras vezes, sendo alvo de uma série de fake news e desinformações acerca de quem ela foi, sobre quais pessoas ela se relacionava e o que ela defendia, com intuito de descredibilizar sua imagem e impactar a opinião pública sobre o caso”.