Pacto da branquitude dificulta acesso de organizações lideradas por pessoas negras a investimento social privado e patrocínios
Vésperas dos jantares de gala do Fundo Agbara, primeiro fundo de mulheres negras do Brasil, são sempre de trabalho árduo. Quem organiza eventos sabe: são centenas de microtarefas para gerenciar —”fez a prova do menu?”, “fechou o artístico?”, “quantas mesas já vendemos”?
Ações que garantam público e diálogos simultâneos com dezenas de fornecedores e parceiros, cada um com seus prazos e prioridades, são ingredientes perfeitos para um caldo indigesto de tensões e ansiedades. Não há equipe de excelência que passe ilesa.
Há também a parte de receber muitos “não” e poucos “sim” de patrocinadores. Para mim, é um capítulo tão intenso, que neste ano, além da exaustão de praxe, cheguei a me questionar sobre a escolha de trabalhar com impacto social e lutas por direito no Brasil —eu sendo uma mulher negra e representando uma organização de mulheres negras.
Mas rapidamente me recordo que a luta por equidade racial, para nós, pessoas negras, onde quer que estejamos, não é uma opção. É sobre perpetuar e ampliar um legado que, aos poucos, está nos beneficiando.
Um legado iniciado há quase 500 anos, com a chegada das primeiras pessoas africanas sequestradas de seus territórios e trazidas forçadamente para exercer funções laborais. Pessoas que logo entenderam a necessidade de imaginar novas possibilidades de existência e de perpetuação das culturas africanas.
Perceberam a importância de criar espaços de socialização que as humanizassem, resistindo às condições indignas de reprodução da vida. E viram a urgência de se organizar para construir transformação.
Então, imediatamente me levanto, porque lido todos os dias com índices socioeconômicos preocupantes para a população negra e porque nossos esforços para mudar esse cenário estão longe de acabar.
O Fundo Agbara atingiu um nível de entrega, excelência e inovação sem precedentes nos últimos quatro anos e, não por acaso, foi reconhecido em eventos internacionais e nas maiores premiações do país, conquistando o maior prêmio do setor de impacto social, o Prêmio Empreendedor Social da Folha, em 2023.
A despeito do racismo estrutural que alicerça todas as camadas materiais, objetivas e subjetivas das relações sociais no Brasil, criamos uma inabalável autoestima institucional. O racismo não nos atinge mais gerando dúvida sobre a nossa capacidade de realização.
Ainda assim, me deparo com situações em que esboços de projetos de pessoas não negras recebem investimentos pré-seed milionários, sem que elas sequer sejam cobradas indicadores de resultado ou uma versão inicial testada. Não posso mentir: isso dá margem para ressentimentos. É desmobilizador, desestimulante.
O investimento social privado no Brasil acontece, em grande parte dos casos, por meio de relações de favorecimento pessoal —uma das piores heranças coloniais—, beneficiando pessoas próximas de quem assina o cheque.
Também ocorre de o tomador de decisão lançar mão de sua posição de poder e conceder investimentos para obter prestígio entre um determinado grupo que deseja acessar. Essas são algumas espessas camadas do pacto da branquitude.
Projetos de pessoas negras não são atrativos para marcas. Neste ano, conquistamos apenas dois patrocínios para o jantar e mais alguns apoios não monetários de empresas comprometidas com a temática racial.
A vontade de desistir foi imensa. Não foram raros os momentos em que me peguei dizendo para o meu time: este será o último Jantar Agbara.
Mas daí chega o dia do jantar. Calafrios, tensão, ansiedade se dissolvem com o início do cerimonial. O black carpet, o momento de cumprimentar e prestigiar os 250 convidados, a presença de grandes referências celebrando nosso trabalho, as infinitas poses para as fotos, os looks, os passinhos black charme. O baile. A cultura negra viva e pulsante.
São tantos depoimentos que recebemos a respeito do impacto que nosso gala gera: pessoas não negras que relatam ter experimentado um dos momentos mais vibrantes de suas vidas, o contato com a poesia periférica, com a capoeira vogue, com o som dos atabaques, com os elementos do candomblé.
“Transformador”, “disruptivo”, “revigorante” e “catalítico” são as avaliações que recebemos com frequência.
Já para pessoas negras, nosso evento imprime significados mais profundos em suas trajetórias. O suntuoso e sofisticado Jantar Agbara é um dos poucos espaços “red carpet” idealizados e realizados por pessoas negras.