PEC 164 pode proibir todo tipo de aborto no Brasil.
Não há trégua nem paz para as mulheres. Elas estão no alvo das perseguições e fazem séculos. Sempre que há uma crise econômica e/ou política, são as mulheres a serem embruxadas, criminalizadas, vilipendiadas, alçadas ao panteão das responsáveis pelos males da humanidade. Assim foi no período medieval e moderno: queimem as bruxas, elas têm poderes! Assim está sendo no tempo presente: elas querem ser donas dos seus corpos e isso é intolerável para fascistas e religiosos.
Na pauta política e ideológica, a ultradireita se une e aprova na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados uma reedição do PL do Estuprador, projeto de emenda constitucional 164/2012, que busca proibir todo tipo de aborto no Brasil. A perigosa proposta pretende incluir num artigo da Constituição a expressão “desde a concepção”, no trecho que trata dos direitos e garantias fundamentais e prevê a “inviolabilidade do direito à vida”.
A pergunta é: por que esta sanha perniciosa de demonizar as mulheres, meninas e pessoas que gestam, em estado gravídico resultante de estupros, obrigando-as a parir? Até morrer? A viver com as cicatrizes físicas e psicológicas por terem sido violadas e obrigadas a serem mães através da violência do estupro? E as mulheres com comorbidades passíveis de morte no parto, bem como as que carregam fetos anencéfalos?
Narrativas ultraconservadoras da extrema direita associam os Direitos Humanos ao comunismo “pagão” que come criancinhas. Desde a década de 1930, a Igreja Católica se opõe ao comunismo em conluio com governos autoritários com feições fascistas, criando uma guerra cultural que teve êxito e arrebanha seguidores que acreditam que o comunismo é o mal a ser extirpado.
Todavia, só o vilão comunista não deu mais conta – foi estratégico adicionar pautas morais e dos costumes em retóricas como “salvem os fetos indefesos, a “ideologia de gênero é a dissolução da família”, sacrifiquem pessoas lgbt+, alunos e alunas na sala de aula são uma “audiência cativa” propícios a serem doutrinados, como se fossem uma página em branco e sem história.
O projeto “escola sem partido” (aquele tirado da gaveta em 2015, feito por homens para reprimir e calar professores e profundamente misógino) recebeu fartos pareceres demonstrando sua inconstitucionalidade. Todavia, não saiu de cena: redirecionaram e reforçaram o foco investindo contra os direitos reprodutivos e a criminalização do aborto mesmo nos casos em que é legalizado.
O espectro do fascismo é pernicioso e ávido de ovos de serpentes: está sempre no cio, move-se conforme os interesses ideológicos e cria/gesta novos inimigos que aglutinem seguidores através de ameaças e do medo. Carl Schmitt, jurista do Nazismo, arguiu que a essência da política é saber distinguir amigos e inimigos. Dos amigos, a subserviência; aos inimigos, a perseguição, o controle, a eliminação.
Cada época da história humana constrói seus deuses e demônios; uns para idolatrar, outros para perseguir e eliminar. No calor dos acontecimentos da última década, as mulheres são alvos preferenciais, atacadas insistentemente, alçadas ao lugar de “inimigas ideais” e responsáveis pela dissolução dos costumes promovendo pânico moral.
Sobre seus corpos e, especialmente, seus úteros, esbravejam padres e pastores nos púlpitos, políticos nas tribunas, todos fascistas demonizando o feminismo e os direitos duramente conquistados.
À exaustão, nesta era da pós-verdade, a realidade dos fatos esmigalha-se em minutos e o que fica e significa é o fictício, a mentira orquestrada para o domínio cultural na produção de imaginários persuadidos pela retórica do convencimento. Está feito o estrago.
O que isto tem a ver com o capitalismo? Tudo. Com o capitalismo em crise e as democracias em risco, o domínio econômico só consegue êxito com o domínio cultural alicerçado em mentiras que, de tão repetidas, são tomadas como verdade. O ideário fascista detém a face mais escrachada do capitalismo e se move conforme a exploração da mais valia. O corpo das trabalhadoras é vital para a acumulação do capital, e crianças são potencialmente mão de obra futura a ser explorada.
Portanto, a PEC não é sobre religião e fé: é sobre poder econômico e domínio. Não é sobre eliminar os estupros e criminalizar estupradores: é sobre manter os privilégios patriarcais e machistas. Não é sobre vidas: é sobre narrativas que aglutinem seguidores “patriotas” na crença de que inimigos existem e devem ser destruídos, eliminados.