Enquanto polêmicas vendem na internet, a gente precisa lutar para fazer valer a Resolução 258 do Conanda, que protege crianças e adolescentes
Todo mundo tem uma história de aborto pra contar (ou não contar), seja o seu próprio ou de alguém que conhece. Se a empresária influencer Maíra Cardi ainda não tinha, agora tem. Milhões de brasileiros e brasileiras acompanharam a sua gestação desejada, que infelizmente terminou em um aborto espontâneo. Tudo foi relatado em sua conta no TikTok, que conta com 1,6 milhões de seguidores/as, e pelos inúmeros perfis de fofoca no Instagram.
Para quem não conhece Maíra e sua família, um breve resumo: ex-BBB, ela alavancou sua carreira de coach de emagrecimento antes dos coaches virarem moda. Mesmo sem diploma na área, seu método de emagrecimento divulgado online viralizou e ela enriqueceu, especialmente por ter trabalhado com pessoas famosas como Anitta. Ela também foi esposa e tem uma filha de Arthur Aguiar, vencedor do BBB 2022, o que ampliou o seu público nas redes sociais. Agora, está casada com Thiago Nigro, conhecido como Primo Rico, um dos primeiros coaches financeiros a bombar na internet, com supostas fórmulas mágicas para enriquecer.
Hoje, Nigro tem uma fortuna de mais de 20 milhões e juntamente com Maíra compartilham nas redes sociais suas rotinas e intimidades. Mais recentemente, expuseram o aborto espontâneo de Maira, o que gerou um debate interessante nas redes. Sabemos que o aborto é um desfecho comum de uma gravidez, seja provocado ou espontâneo. A estimativa é de que, no Brasil, 1 a cada 6 gestações termine em aborto espontâneo, sobretudo nas primeiras semanas. Além disso, 1 a cada 7 brasileiras afirma ter interrompido a gravidez de maneira intencional, conforme a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2021.
Tabu e solidão para a maioria
Apesar de ser um acontecimento comum na vida reprodutiva, o tabu ainda é grande – até porque o aborto voluntário é criminalizado no Brasil. As exceções são os casos de gravidez decorrente de violência sexual, risco à vida da pessoa gestante e anencefalia fetal. Pouco se fala sobre o tema, mesmo com pessoas próximas e de confiança, especialmente se for uma interrupção provocada da gestação.
No geral, esse acaba sendo um processo solitário, permeado de estigmas e de falta de informação, até mesmo de quem trabalha com a assistência de pessoas gestantes. Não são raros os relatos de que um diagnóstico de morte fetal foi dado sem nenhum cuidado emocional, ou de mulheres que sofreram um aborto espontâneo e foram tratadas como criminosas ao buscarem cuidado em saúde.
Mas é verdade que cada vez mais a sociedade fala sobre aborto e a partir de um lugar de direitos e de saúde. Um exemplo recente é o sucesso da campanha ‘Criança Não É Mãe’, articulada pelo movimento feminista, que fez a maior parte da população defender o direito ao aborto legal para vítimas de violência sexual (mesmo em idades gestacionais avançadas). A campanha impediu o avanço do PL1904 e da PEC164 no Congresso, desmoralizou parlamentares conservadores e fundamentalistas (a Bancada do Estupro), e levou a esquerda brasileira de volta às ruas.
Polêmica vende mais
Mais recentemente, o movimento feminista atuou pela aprovação da Resolução 258/2024 pelo Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Mesmo diante da aliança entre o governo e (pasmem) setores fundamentalistas da política que seguem tentando barrar a Resolução, como a senadora Damares Alves (Republicanos) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Aliança antes impensável, é bom frisar. Mas o que mais importa nessa história toda é que o documento, que protege crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e organiza o acesso ao aborto legal, foi aprovado e publicado!
Apesar disso, o aborto segue sendo um assunto polêmico e, como quase toda polêmica, vende muito. Ainda vende matéria sensacionalista na imprensa, anúncio falso de Cytotec por WhatsApp, e publicidade antiaborto nas plataformas da Meta. Só o Brasil Paralelo, por exemplo, investiu mais de 700 mil reais nesse tipo de anúncio no Instagram e no Facebook, em 2023, de acordo com pesquisa do NetLab.
A maneira como o casal Cardi Nigro anunciou publicamente a perda gestacional mobilizou bastante as redes sociais. Maíra, que estava com 8 semanas de gestação, postou um vídeo do momento em que a médica anunciou que o feto não tinha mais batimentos cardíacos. Já Thiago postou, em seus stories do Instagram, um vídeo em que o embrião aparecia expelido no chão de casa, e ele dizendo que “já tinha bracinho, dedinho…”
As intenções por trás
As críticas ao casal falaram mais alto do que o acolhimento – houve até quem dissesse que o aborto tinha sido provocado para gerar conteúdo e viralizar. Fato é que a exposição da intimidade do casal nas redes sociais é lucrativa. Enquanto eles invariavelmente aumentam seus ganhos com publicidade e monetização dos perfis, para nós, feministas, não é fácil assim participar dessa arena pública. Mesmo que nossa atuação consista sobretudo na divulgação de informações científicas e de saúde, de relatos e defesa de direitos humanos básicos.
O centro do julgamento virtual foi o vídeo do produto gestacional recém-expelido, sem nenhum tipo de censura ou aviso prévio. Os usuários da rede mundial de computadores também foram rápidos em apontar um suposto interesse do casal em reforçar suas crenças políticas e religiosas. O que fortaleceria discursos conservadores que humanizam ‘nascituros’ e colocam a vida de fetos e embriões acima da vida das pessoas gestantes.
A contradição estaria no fato de que se fosse um filho nascido morto, ele não teria postado. Até porque, se nascituro fosse gente, Thiago teria cometido o crime de vilipêndio de cadáver. Eles são cristãos evangélicos recém-convertidos, e eu desconheço o posicionamento deles sobre descriminalização do aborto. No entanto, cristãos fundamentalistas são grandes ativistas contra o direito ao aborto em qualquer circunstância – inclusive nos casos de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.