16 anos depois, Processo Transexualizador no SUS segue restrito e sob ataque

31 de janeiro, 2025 Diadorim Por Jess Carvalho

População trans brasileira enfrenta longas filas e dificuldades no acesso a serviço especializado via SUS

“Se eu não tivesse acessado o Processo Transexualizador pelo SUS, provavelmente não estaria aqui para contar minha história”, afirma o filósofo Eli Bruno Prado Rocha Rosa, 30. Quando chegou ao Cepatt (Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais), em Curitiba, em 2017, ele vivia um período turbulento. As ideações suicidas eram frequentes e estavam relacionadas à sua dificuldade de levar a transição social de gênero a cabo, já que não tinha condições de pagar pela hormonioterapia.

“Eu era estagiário e vivia com a minha companheira, que na época também trabalhava como estagiária. A gente se bancava sozinhos e precisava pagar o aluguel. Eu não tinha a menor condição de fazer um acompanhamento particular”, lembra.

Ele procurou uma UBS (Unidade Básica de Saúde) para obter encaminhamento a um serviço especializado. Três meses depois, iniciou atendimento psicológico, e, em seis meses, começou o tratamento hormonal. Apesar de manifestar interesse na mastectomia desde o início, sete anos depois ainda aguarda encaminhamento para a cirurgia.

“O sistema está sobrecarregado, e o tempo de espera é uma das maiores barreiras para quem precisa de ajuda”, diz Rosa. Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o tempo de espera por cirurgias de adequação de gênero pode chegar a uma década.

A demora no atendimento começa já no encaminhamento inicial. “Conheço uma pessoa que buscou a UBS no meio do ano passado, mas a atendente não fez o encaminhamento. Foram meses até ela perceber a demora, retornar à unidade e descobrir que nunca havia sido registrada para o Cepatt. Isso é transfobia institucional”, relata Rosa.

A falta de capacitação dos profissionais de saúde e a demora no atendimento afetam diretamente a qualidade de vida das pessoas trans. “A fila não é só um número. São vidas esperando por um atendimento que pode ser crucial.”

Centralidade no Sul e Sudeste
O Processo Transexualizador do SUS foi instituído em 2008, com o objetivo de oferecer atendimento integral à população trans, incluindo acompanhamento psicológico, terapia hormonal e cirurgias de adequação de gênero.

Dados do Ministério da Saúde obtidos pela Agência Diadorim via Lei de Acesso à Informação mostram que, entre 2014 e 2023, foram realizados 690 procedimentos cirúrgicos relacionados ao Processo Transexualizador no país, com um crescimento de 412,5% no período.

O número variou, ao longo dos anos, com uma queda significativa em 2020 (65% a menos) devido à pandemia de Covid-19.

Quanto aos procedimentos ambulatoriais relacionados à hormonização, o número de atendimentos subiu de 84 em 2015 para 7.072 em 2023, um aumento de 8.317%. A terapia hormonal geral, responsável por 82% dos procedimentos ambulatoriais no período, teve um crescimento contínuo e acelerado, especialmente entre 2018 e 2019, quando o número de procedimentos praticamente dobrou.

Apesar do avanço da política pública, o acesso ainda é desigual. Atualmente, de acordo com o Ministério, o Brasil conta com 27 unidades de saúde habilitadas para prestar a Atenção Especializada no Processo Transexualizador (veja mapa abaixo).

A maior parte dos serviços está concentrada nas regiões Sul e Sudeste, enquanto outras áreas do país permanecem com baixa cobertura. Além disso, mais da metade dos estabelecimentos credenciados estão localizados em capitais.

É por isso que Sayonara Nogueira, secretária de Comunicação da Rede Trans Brasil, defende a capilarização dos programas fora das capitais. “A interiorização é crucial para garantir que pessoas trans em regiões rurais ou do interior tenham acesso ao Processo Transexualizador sem precisar viajar para grandes centros urbanos”, afirma.

Para Nogueira, é necessário aumentar o credenciamento de hospitais universitários e de estabelecer parcerias estratégicas para ampliar o atendimento.

“Precisamos divulgar mais os serviços disponíveis, desburocratizar os processos, reduzir os prazos para consultas, melhorar a distribuição geográfica dos serviços e aumentar o financiamento. Somente assim podemos alcançar a equidade e a universalização da saúde pública”, diz.

Visando melhorar o atendimento à população trans no SUS, um grupo de trabalho formado por profissionais de saúde, pesquisadores e entidades da sociedade civil, em diálogo com gestores estaduais e municipais, deu origem à portaria que institui o Paes Pop Trans (Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans), publicada em dezembro do ano passado pelo Ministério da Saúde.

Segundo a pasta, a medida tem como objetivo combater lacunas históricas no atendimento à população trans e promover cuidados integrais ao longo da vida, enfrentando os impactos da transfobia no acesso à saúde pública.

O programa prevê a ampliação dos serviços de 27 para 194 unidades até 2028, com um investimento total de R$ 442,9 milhões, sendo R$ 68 milhões destinados a 2025.

A Tabela do SUS –como é chamada a lista de procedimentos médicos, materiais e insumos utilizados em atendimentos e tratamentos da rede pública– também foi reformulada. Foram excluídos 14 procedimentos e incluídos 34 novos, entre ambulatoriais e hospitalares, além de medicações para hormonização cruzada. Em 2025, o programa planeja habilitar 36 serviços ambulatoriais e 23 cirúrgicos, com expansão gradual nos anos seguintes.

Entre as mudanças mais relevantes feitas pelo Ministério da Saúde estão a redução da idade mínima para cirurgias, como mastectomia, de 21 para 18 anos, e a autorização para o uso de hormônios a partir dos 16 anos, com consentimento dos pais.

Também foram incorporados bloqueadores de puberdade para crianças trans em estágio inicial de desenvolvimento (chamado de “Tanner 2”). Essas alterações, em conformidade com a Resolução 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina, buscam garantir acesso mais seguro e inclusivo e reduzir filas de espera.

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