Homens trans e pessoas transmasculinas engravidam e abortam, mas o sistema de saúde não os reconhece

27 de maio, 2025 Portal Catarinas Por Adriana Amâncio e Mariana Rosetti

Muitas pessoas transmasculinas e homens trans nem chegam a procurar o atendimento por medo de sofrer violências, acabam recorrendo a métodos caseiros, sem segurança e sem acompanhamento posterior.

“Aqui é um lugar para grávidas. Você sofreu um aborto, então vai para casa!”, ouviu Silas*, um homem trans de 28 anos, de uma enfermeira do Hospital da Mulher Mariska Ribeiro, em Bangu, no Rio de Janeiro. O comentário veio ao procurar atendimento médico emergencial, após perder, de forma espontânea, um feto com 22 semanas. “Você é nova, vai para casa e espera sair [o tecido residual do aborto]. Se não sair, a gente faz alguma coisa”, completou a profissional, ignorando, além da saúde, a identidade de gênero de Silas.

Não era a primeira violência que ele sofria em uma unidade de saúde. Meses antes de descobrir a gestação, ouviu de um médico que, pelo uso contínuo de hormônios, ele seria estéril e não poderia engravidar. O despreparo custou a saúde física e mental de Silas.

O momento não era o ideal para uma gravidez: para fugir das violências que sofria em casa, morava em um abrigo para pessoas em situação de vulnerabilidade.

“Eu tinha muita dificuldade para me alimentar. Pensava: o que eu vou fazer com um bebê recém-nascido nessa situação? Voltar para a casa da minha família não era uma opção. Eu fugi de lá por um histórico de violências, a maioria sexuais”, relembra.

Silas sabia desde os cinco anos que não queria ser menina, mas também não se considerava um menino. Criado em uma família religiosa, fazia promessas ao céu, pedindo que seu corpo fosse igual ao de um boneco. O reconhecimento como homem trans veio somente na adolescência. A mãe demorou a aceitá-lo e o restante da família cortou relações: “eles me deram como morto”, conta.

Apesar das dificuldades, decidiu pela manutenção da gravidez. Silas tem amplo conhecimento sobre uso de plantas medicinais, adquirido por técnicas transmitidas por sua avó, estudos e sua ancestralidade. Nos anos anteriores, havia ajudado cerca de 20 pessoas com útero a realizarem abortos, utilizando esse saber tradicional. Mas não estava preparado para usar esses conhecimentos na interrupção da própria gestação.

No Brasil, o aborto legal é permitido nos casos em que a gestação é resultado de violência sexual e quando há risco de morte para a gestante, ou ainda em casos de anencefalia. O procedimento está assegurado legalmente desde 1940, mas a regulamentação só veio em 1999, com a norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, criado pelo Ministério da Saúde. O hiato de 59 anos demonstra os entraves históricos impostos ao tema. Entraves que seguem presentes, refletindo-se nas dificuldades de acesso ao serviço, como a exigência de boletins de ocorrência e laudos periciais, mesmo quando não obrigatórios por lei.

Para sensibilizar profissionais sobre a importância do atendimento humanizado, foi criada, em 2005, a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento. Uma leitura atenta ao texto mostra que a medida não inclui as pessoas transmasculinas nem os homens trans. Os vários trechos, inclusive os que recomendam atendimento humanizado em caso de aborto, só mencionam mulheres.

Três pessoas que buscaram Silas para interromper a gestação, tentaram realizar o aborto legal antes de procurá-lo, mas não conseguiram informações suficientes. Todas se enquadravam nas permissões previstas pela lei brasileira, relembra.

Após o aborto espontâneo, Silas foi mandado para casa sem qualquer orientação adequada.

“Tive uma depressão profunda e passei muito tempo tomando chás de limpeza de útero, para eliminar qualquer impureza que pudesse ter ficado no meu corpo. Eu queria fazer o trabalho que o hospital se recusou a fazer”, desabafa.

O enfermeiro obstetra João Gabriel Silva, pesquisador na área de saúde sexual e reprodutiva de homens trans e diretor da Associação Baiana de Travestis, Transexuais e Transgêneros em Ação (Atração), explica que esse tipo de orientação deveria ser padrão.

“Abortos que ocorrem no primeiro trimestre gestacional, comumente, são expelidos de forma natural. Ainda assim, é necessário realizar um exame de imagem para verificar se há algum material remanescente que demande uma curetagem. Caso se observe um volume elevado de sangramento ou outros sinais de alerta, deve-se orientar o paciente a retornar”, ressalta.

Embora seja o procedimento mais comum no Brasil para remover restos de abortos incompletos ou retidos, a curetagem, por ser cirúrgica, é contraindicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) devido aos riscos e danos que pode causar. Uma alternativa mais segura e eficaz é a Aspiração Manual Intrauterina (AMIU), que pode ser feita em ambiente ambulatorial, mas ainda é pouco utilizada no país.

Silas, que só conseguiu retornar a um consultório médico cinco anos após o aborto espontâneo, não teve acesso a exames nem a acompanhamento psicológico.

“Eu não sabia o tamanho da violência que eu estava sofrendo naquele hospital quando fui pedir ajuda. Se não fosse o conhecimento que eu tinha sobre as ervas, será que eu estaria aqui hoje?”, questiona.

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS) afirma que todas as maternidades da rede municipal realizam abortos legais até 22 semanas, conforme as diretrizes do Ministério da Saúde. Após esse período, o procedimento é considerado de alta complexidade e só pode ser feito em unidades federais.

Sobre o caso de Silas, a direção do Hospital da Mulher Mariska Ribeiro informou não ter encontrado registros e destacou que, em 2018, a unidade estava sob outra gestão, com mudanças no quadro de funcionários. A SMS declarou repudiar qualquer forma de discriminação de gênero e sexual e ressaltou que investe na qualificação da rede para um atendimento mais acolhedor às pessoas trans.

Ainda segundo a secretaria, a atual gestão tem investido na qualificação da rede para garantir atendimento acolhedor e o direito à saúde e à cidadania das pessoas trans. De acordo com a SMS, todas as 13 maternidades municipais oferecem acolhimento, escuta ativa, testes rápidos, profilaxias e, quando necessário, a interrupção da gestação conforme os protocolos do Ministério da Saúde. O atendimento a pessoas trans, segundo o órgão, ocorre também na rede de Atenção Primária e nos hospitais.

A SMS informou ainda que iniciou, no último ano, um projeto piloto de pré-natal específico para pessoas trans no Hospital Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda. A experiência bem-sucedida servirá de base para ampliar esse modelo de atendimento para outras maternidades da rede e para a Casa de Parto. O órgão destacou que no HMMABH o cuidado é oferecido de forma multidisciplinar por equipe capacitada e sensibilizada, em articulação com a Atenção Primária.

Aborto em dados

Ao longo desta apuração, tivemos acesso ao Dossiê Gravidez, Aborto e Parentalidades nas Transmasculinidades, um compilado de estudos publicados na edição especial da Revista Brasileira de Estudos da Homocultura. O levantamento, que entrevistou 900 homens trans e pessoas transmasculinas, traça um panorama sobre as vivências reprodutivas dessa população no Brasil.

Entre os 900 entrevistados, mais de um quarto tinham entre 25 e 34 anos. Quatro de cada dez possuíam ensino superior incompleto e dois a cada dez haviam concluído o ensino médio. Mais da metade — 60% — se autodeclarou branco, enquanto 36% se identificaram como pretos ou pardos.

A pesquisa revelou que um terço das pessoas ouvidas já sofreu algum tipo de violência relacionada à identidade de gênero, como o desrespeito ao nome social, ao pronome ou à identidade transmasculina. Mais de 90% nunca passaram por uma gestação e, entre aquelas que engravidaram, 78% afirmaram que a gravidez não foi planejada.

Entre as pessoas que gestaram, 32% declararam ter realizado um aborto. O dado mais alarmante, no entanto, é que mais de seis em cada dez relataram ter sofrido algum tipo de violência durante o procedimento. Além disso, todas as pessoas que abortaram afirmaram não ter recebido qualquer acompanhamento médico após o processo.

O antropólogo e pesquisador Dan Kaio Lemos, um dos autores do Dossiê, afirma que o levantamento mostra que o aborto e a gestação estão interligadas com outros aspectos da vida dos homens trans e pessoas transmasculinas. “A pesquisa foi um pouco ampla, pegando outros fatores porque entendemos que a gestação e o aborto perpassam por fatores como questões sociais, econômicas e outros setores da saúde como o processo transexualizador”, detalha.

Contracepção e gravidez indesejada

Dizer que a gravidez de um homem trans ou transmasculino foi resultado de negligência médica não é suficiente para acessar o aborto legal. Por não estar previsto na lei, seria necessário acionar a justiça e, dificilmente, haveria tempo hábil para interromper a gestação antes do prazo estabelecido e seguro, de 22 semanas.

José viveu isso na pele. Em 2024, vivia uma relação monogâmica com um homem cis homossexual. Ele se recorda com exatidão do dia que, ao acompanhar seu parceiro em uma consulta, ouviu o médico dizer que era altamente improvável o companheiro engravidar alguém, concluindo: “você é estéril”.

“A gente acreditou na palavra do médico e, como éramos exclusivos, às vezes, não usávamos camisinha”, conta. Os sintomas começaram a aparecer, mas ele custou a acreditar. Vários testes foram necessários para se convencer de que estava grávido.

“Entrei em contato com outro médico da rede pública, que me informou que, na verdade, meu companheiro não era estéril. Ele só tinha uma taxa de fertilidade um pouco abaixo do normal, mas isso não significava que ele não poderia engravidar alguém”, relembra José.

Morador da periferia, com dificuldades financeiras e focado nos estudos, sabia que não poderia levar a gestação adiante. “Era um sonho para mim gestar, trazer uma criança ao mundo, só que virou um pesadelo porque, na época — e até hoje, né? — a gente não tinha condições de cuidar de uma criança. Eu parto do princípio de que é algo que precisa ser planejado”, conta.

Foi em uma rede feminista que encontrou apoio para realizar o aborto fora da lei. O coletivo conseguiu o medicamento, orientou o uso e o acompanhou durante o processo. “Eu acho que preferiria morrer do que dar à luz a uma criança nessas condições. A gente acaba ficando desesperado, né?”, desabafa.

A gravidez indesejada da qual José foi alvo não é um fato isolado. Segundo o Dossiê Gravidez, aborto e parentalidades nas transmasculinidades, das pessoas entrevistadas que afirmaram já ter gestado (32 no total), 78% afirmaram não ter planejado a gravidez. Segundo o estudo, isso acontece porque a prevenção não tem a devida atenção dos serviços de saúde.

A desinformação somada à dificuldade de acesso a métodos contraceptivos corrobora esse cenário. João Gabriel Silva explica que “em pessoas trans o mais recomendado é buscar métodos contraceptivos não hormonais, a exemplo do Dispositivo Intrauterino (DIU) de cobre, que é de difícil acesso”, observa.

Em algumas regiões, ainda segundo João, “não são disponibilizados DIU em quantidade suficiente para atender toda a demanda, formada por mulheres cis também”. Além disso, complementa, “já que a orientação para enfermeiros inserirem o DIU é recente, há poucos profissionais qualificados para essa função, ainda cabe mais aos médicos o fazerem”, conclui.

Estupro corretivo e o silenciamento dessa violência

Entre as violências que podem levar a uma gestação indesejada, o estupro corretivo é uma das práticas mais brutais. A agressão, cometida sob a crença de que é possível “corrigir” a identidade de gênero ou a orientação sexual da vítima, é uma realidade invisibilizada nas estatísticas oficiais. O direito ao aborto legal é garantido nesses casos, mas o desconhecimento e o despreparo das instituições ainda impedem o acesso ao procedimento.

Jhordan sabe o que isso significa. Em 1983, antes da regulamentação do aborto legal, aos 16 anos, descobriu que estava grávido após ser estuprado por um homem cis que, ao violentá-lo, afirmou que o “ensinaria a ser mulher”. Nunca havia menstruado, tampouco tido relações sexuais. O ataque aconteceu após revelar a uma pessoa próxima, em quem achou que pudesse confiar, que era um menino.

A confirmação da gestação veio durante um ultrassom, exame que exerceu um apelo emocional em Jhordan, interferindo na sua maneira de lidar com a situação. “Eu não sei se aquilo [a imagem da criança durante o exame] foi colocado propositalmente para que eu desistisse, mas, quando eu vi aquela criança com o dedo na boca, pensei: ‘essa é minha única ligação com alguém no mundo’.”

A exibição de ultrassons com imagens detalhadas do feto é uma prática comum para tentar convencer pessoas a manterem a gestação, foi o caso de Jhordan. Sua mãe chegou a sugerir a interrupção, mas, a partir daquelas imagens, decidiu levar a gravidez adiante.

Após o parto, a mãe de Jhordan obteve a guarda do bebê, alegando que o filho não tinha condições emocionais nem financeiras para cuidar da criança. O estupro nunca foi denunciado.

“A gente escuta que tem que denunciar, mas o medo é real. O estupro corretivo não é só uma agressão sexual, é uma tentativa de apagar quem a gente é.”

Por décadas, viveu o que chama de “não lugar”. “Eu não me via como mulher cis, não me via como lésbica, mas não conhecia a transexualidade. Vivi 46 anos assim”, conta. O silêncio permaneceu até a mãe morrer, sem saber a origem daquela gravidez. Hoje, aos 57 anos, Jhordan é escritor, casado e ativista pelos direitos das pessoas trans.

Quase meio século depois da violência sofrida por ele, o Brasil ainda não conseguiu garantir o acesso básico a direitos reprodutivos e à saúde de pessoas transmasculinas. O aborto legal, mesmo quando assegurado por lei, continua sendo negado ao aumentar burocracias, reforçar preconceitos institucionais e integrar uma estrutura de saúde que insiste em não reconhecer a existência dessas pessoas.

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