Lei com fake news sobre aborto legal é sancionada no Rio para intimidar vítimas de estupro, por Paula Guimarães

18 de junho, 2025 Portal Catarinas Por Paula Guimarães

Projetos de lei que desejam institucionar a desinformação sobre o aborto legal também foram apresentadas em Florianópolis (SC) e Belo Horizote (MG).

Como se a falta de informação, o estigma e a criminalização já não fossem obstáculos suficientes para quem precisa de um aborto legal, alguns legisladores querem agora institucionalizar a desinformação. Na cidade do Rio de Janeiro, isso já é realidade com a sanção da Lei Municipal 8.936, de 12 de junho, que obriga unidades de saúde do SUS a exibirem cartazes com mensagens falsas e condenatórias sobre aborto. O objetivo é claro: intimidar quem busca exercer um direito garantido por lei. A autoria é dos vereadores Dr. Rogério Amorim (PL), Rosa Fernandes (PSD) e Marcio Santos (PV).

Espera-se de um legislador que proponha políticas públicas para assegurar direitos. Mas, nesse caso, a proposta faz o oposto.

O acesso ao aborto legal, já limitado por desinformação e estigma, é ainda mais restringido por uma norma que reforça mitos sem base científica, usando frases moralistas e alarmistas para constranger e intimidar. Trata-se de violência institucional respaldada por lei.

Os cartazes obrigatórios devem conter três mensagens:

– Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito;

– Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?;

– Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida!.

A primeira afirmação é uma estratégia recorrente para convencer mulheres a não abortarem, ainda que já existam evidências de que a interrupção da gestação é, na maioria dos casos, mais segura do que levá-la até o fim, tanto física quanto psicologicamente. Um estudo de 2012, de Elizabeth Raymond e David Grimes, revelou que, nos Estados Unidos, uma mulher tem 14 vezes mais chances de morrer ao levar uma gestação até o final do que ao realizar um aborto.

Além de promover desinformação, os cartazes vão exercer coerção moral disfarçada de orientação.

A informação sobre o direito à entrega para adoção, acaba sendo um convite que reforça a pressão frequente para que a pessoa desista do aborto legal, que é um direito reparador para quem sofreu estupro.

Já a mensagem sobre o descarte do produto do aborto atua como punição simbólica. Apresentada em tom de pergunta, a frase é cruel e antiética, desrespeitando princípios de cuidado, autonomia e dignidade. Termos como “descartado como lixo” distorcem procedimentos médicos, promovem repulsa e desumanizam quem busca o aborto legal.

Mentiras como estratégia para replicar leis antiaborto

Esse tipo de lei é um exemplo claro do que se convencionou chamar de pós-verdade: quando fatos objetivos, incluindo evidências científicas, têm menos peso na formação da opinião pública do que apelos emocionais e crenças pessoais. O agravante é que agora essas distorções aparecem deliberadamente no texto da lei. Isso evidencia que não há limites éticos para a ofensiva de retrocesso nos direitos das pessoas que gestam.

As violações ao aborto legal já são frequentes: serviços que impõem percursos longos e penosos, burocracias que atrasam o procedimento até que ele se torne inviável. Organizações contrárias ao aborto infiltram-se nos serviços de saúde, judicializam casos, incentivam disputas entre pais e mães. Não faltam ainda exemplos de equipes médicas que pedem a judicialização por medo de retaliações e, uma vez na Justiça, juízas convidam as crianças à desistência.

Mas nada disso parece bastar. Para os legisladores do Rio de Janeiro que propuseram e aprovaram a medida, e para o prefeito que a sancionou, toda essa violência institucional, toda essa crueldade, ainda é insuficiente.

Leis como essa não se limitam ao âmbito municipal. Fazem parte de uma estratégia coordenada: primeiro a replicação em outros municípios, depois a estadualização, até alcançar o plano nacional. São projetos-modelo pensados para se espalhar por todo o país.

Um exemplo é o projeto de lei 19602/2025, apresentado em 10 de junho, em Florianópolis (SC), pelo vereador Ingo Câmara (PL), que institui uma “campanha permanente em prol da vida e conscientização antiaborto”. A proposta prevê ações para difundir supostos efeitos colaterais do aborto e reforçar a desinformação.

Outra proposta semelhante está em tramitação desde 10 de fevereiro deste ano, na Câmara de Belo Horizonte (MG), o PL 42/2025. O projeto, de autoria do vereador Uner Augusto (PL), prevê a instalação de “cartazes educativos” que, na prática, disseminam informações distorcidas, sensacionalistas e enganosas. O foco é descrever de forma chocante os métodos de aborto, enfatizando a morte do feto e associando seus restos a “lixo hospitalar”. Também repete alegações infundadas sobre os supostos riscos físicos e psicológicos do procedimento, incluindo infertilidade, depressão, uso abusivo de álcool e pensamentos suicidas, tudo sem base científica.

A tática é antiga: deslegitimar a capacidade das pessoas que gestam de tomar decisões conscientes sobre seus corpos, mesmo diante de produções científicas que comprovam os benefícios da garantia do direito. Ignoram que o direito ao aborto tem impactos positivos comprovados para a saúde como um todo e para a vida.

Alívio é o sentimento mais comum de quem aborta

“Quando faltam evidências, os legisladores as inventam”, afirma Diana Greene Foster no livro Gravidez Indesejada, publicado no Brasil em 2024. A frase resume a motivação do Estudo Turnaway, coordenado por Foster, demógrafa e professora da Universidade da Califórnia, que investigou, por dez anos, as consequências de ter ou não acesso ao aborto.

A pesquisa mais extensa e rigorosa sobre o tema nos EUA foi motivada por especulações que influenciam decisões judiciais e políticas públicas sobre aborto, como no caso Gonzales v. Carhart (2007), em que a Suprema Corte dos EUA manteve a proibição do procedimento em determinado período gestacional. O juiz Anthony Kennedy alegou que o aborto poderia causar sofrimento emocional às mulheres, mesmo reconhecendo a falta de dados confiáveis para sustentar essa afirmação. “A depressão severa e a perda de autoestima podem ser resultados desse procedimento”, escreveu, fundamentando-se em suposições morais, não em evidências.

O Estudo Turnaway foi justamente criado para testar essa hipótese. O resultado: aquelas que tiveram o procedimento negado apresentaram mais problemas de saúde mental. O sentimento predominante entre as que abortaram foi o alívio e ele persistia cinco anos depois. As que mais relataram sofrimento foram as que entregaram o bebê para adoção.

Foster lembra ainda que, em 1987, o então presidente Ronald Reagan tentou produzir evidências contrárias ao aborto para revogar Roe v. Wade. Encarregou um renomado médico opositor ao aborto de elaborar um relatório. Após dois anos de buscas e mais de 250 estudos analisados, a conclusão foi: não há evidências conclusivas de que o aborto prejudique a saúde das mulheres.

Essa tentativa frustrada de criar uma “verdade conveniente” se repete hoje, por vereadores, deputados e senadores que tentam legitimar o controle dos corpos por meio da desinformação.

Como afirma Foster, “não se pode formular políticas com base em suposições do que parece razoável sem conversar com uma amostra representativa de pessoas que realmente desejavam um aborto”.

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