(Ocimara Balmanet, de O Estado de S. Paulo) ONG envia documentação ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Depois da roda de capoeira, do acarajé baiano e do toque dos sinos de Minas Gerais, chegou a vez de os chás, as rezas e as massagens que servem de pano de fundo para muita gente chegar ao mundo se tornarem patrimônio nacional.
“A maioria das parteiras é idosa e o saber acumulado por elas encontra-se sob ameaça de desaparecimento diante de um contexto que inclui a oralidade desse saber, o desinteresse das novas gerações pelo ofício e a pouca valorização da profissão em nossa sociedade”, afirma Júlia Morim, antropóloga do Instituto Nômades. “Partejar não é só retirar o bebê. Precisamos preservar esse saber coletivo que reforça a identidade de um povo.”
Apesar de não haver uma estatística oficial, estima-se que sejam realizados 40 mil partos domiciliares no País ao ano, a maioria deles assistida por parteiras tradicionais das Regiões Norte e Nordeste. Para fazer o inventário, a ONG localizou e entrevistou 165 parteiras das 871 residentes no Estado de Pernambuco.
Maria Fernanda da Silva, de 39 anos, é uma delas. Vive em Caruaru (PE) e herdou o ofício da mãe. Como a maioria das parteiras, fez o primeiro parto na adolescência e no susto.
Ela tinha 16 anos, quando uma “paciente” de sua mãe chegou prestes a dar à luz. Na ausência da mãe, assumiu a tarefa. “Eu já era ajudante, virei a parteira. Com direito a acompanhar a dilatação, pegar o menino e cortar o cordão umbilical.”
De lá para cá, foram mais 200 partos e, nos últimos anos, Fernanda assistiu a uma mudança radical na clientela. “Antes, ou a gente fazia o parto ou a mulher ia parir sozinha. Agora, não. Com a chegada dos hospitais, essas mulheres mais simples preferem o atendimento médico. Muitas até escolhem a cesárea.”
Por outro lado, as parteiras conquistaram um outro público. “Atualmente, quem nos procura são mulheres mais esclarecidas. Meu trabalho virou diferencial.”
Opção. Esse novo nicho de clientes extrapolou as fronteiras do Norte e Nordeste. Em qualquer grande centro urbano tem crescido o número de gestantes que trocam o hospital pela própria casa.
Desde 2009, a parteira Ana Cristina Duarte já fez 120 partos domiciliares na cidade de São Paulo. Formada em obstetrícia, Ana conta que seu público é formado por mulheres com curso superior pertencentes às classes média e alta. Um dos partos que ela fará neste mês é o de Kelly, de 30 anos, médica que decidiu abrir mão do hospital para parir em casa (veja depoimento nesta página).
“Assistimos a uma mudança de paradigma. Atendo a mulheres intelectualizadas, que chegaram a mim depois de pesquisarem o assunto e de terem certeza de sua escolha”, afirma. Ana cobra entre R$ 2 mil e R$ 4 mil por cada um dos seis partos que realiza ao mês. Se a gestante também optar pelo pré-natal, paga R$ 100 pela consulta.
Essa “profissionalização financeira”, no entanto, não chegou ao Nordeste. Por lá, Fernanda, como a maioria das parteiras tradicionais, nunca recebeu remuneração alguma. “Aqui, criou-se essa imagem de caridade. Então, mesmo quando faço o parto de alguém com mais dinheiro, não sei cobrar. Mas a gente tem de mudar isso, porque eu preciso comer”, brinca.
Vida dupla. Para pagar as contas, muitas parteiras enveredaram para o trabalho em hospitais, seja na função de auxiliar de enfermagem ou como parteiras hospitalares. Sem abandonar, é claro, a clientela que acredita no parto domiciliar.
Foi o que Fernanda fez. Formou-se enfermeira e comemora os avanços observados desde sua chegada ao hospital. “Antes, os médicos eram muito conservadores; hoje, até o parto de cócoras eles já começaram a aceitar. Mas, para poder cantar e orar, só em casa mesmo.”
O Instituto Nômade acredita que o registro como patrimônio imaterial pode suscitar avanços na discussão sobre a valorização do ofício e ajudar na conquista de direitos trabalhistas e sociais. O inventário enviado pela ONG está na etapa de avaliação técnica do Iphan e deve ser discutido no próximo mês na Câmara do Patrimônio Imaterial do órgão.
“Está em análise, mas já se pode dizer que o saber, a forma de fazer e os conhecimentos das parteiras são bens passíveis de reconhecimento”, diz Claudia Vasques, coordenadora de registro do Departamento do Patrimônio Imaterial do Iphan.
“Somos terminantemente contra. Uma das causas mais frequentes da mortalidade materna são as hemorragias, e elas não são previsíveis. Podem acontecer naquele parto que todos acreditam que não tenha perigo algum. Nesse caso é preciso o uso de medicações venosas e a retirada rápida do útero da mulher. E isso só pode ser realizado no leito hospitalar. Só se pode falar em parto sem risco 25 horas após o nascimento”, afirma a médica Vera Fonseca, diretora da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Para ela, a prática do parto em casa precisa ser combatida tendo em vista dois cenários: a falta de hospitais nos rincões do País e, nos grandes centros, a propagação da ideia de que a maternidade seja um ambiente hostil à gestante.
“Nas cidades, fazer parto em casa é um verdadeiro modismo. Começou com as celebridades, virou mania e já fez muitas vítimas iludidas com a lógica ‘gravidez saudável, parto tranquilo’.”
Em janeiro deste ano, a australiana Caroline Lovell, grande defensora dos partos domiciliares, morreu aos 36 anos logo após dar à luz, em casa, sua segunda filha. A ativista teve uma parada cardíaca.
‘Vou parir em casa, com ajuda de parteira’
Sou médica e estou grávida de 36 semanas da minha primeira filha. A Marina deve vir ao mundo até o fim deste mês, mas bem longe do hospital. Ela vai nascer em casa, com a ajuda de uma parteira.
No começo, meu marido tinha um pouco de medo, mas, com o tempo, ele compreendeu a minha escolha. Com a minha família foi mais fácil convencer pelo fato de eu ser médica. Se eu estou falando que está tudo bem, eles acreditam.
Sei que minha decisão vai contra o que pensa minha própria classe. Porque aqui no Brasil existe uma luta por campo de atuação. A briga é tão ferrenha que tive um professor na faculdade que era contra os médicos do Programa Saúde da Família fazerem pré-natal. Ele achava que era tarefa restrita a obstetra. Imagina então o que acham de uma enfermeira assumir a função?
Mas não existe nenhuma loucura nisso. E nem volta à idade da pedra, como muitos dizem. Muito pelo contrário. Nós é que estamos atrasados. Em países desenvolvidos isso nem é mais discutido, já faz parte da cultura. Eles sabem que se o pré-natal é de baixo risco, como o meu tem sido, não tem por que ir para o hospital.
Agora, se durante o parto houver alguma intercorrência, entra em cena o plano B. No meu caso, há um hospital público pertinho. Mas não será preciso, tenho certeza de que a parteira e o pediatra darão conta de tudo.
‘Minha bisneta nasceu nas minhas mãos’
No ano de 2008, quando fiz o parto de número 5 mil, eu parei de contar. Já estava bom para servir de currículo, não é? Também, são quase 60 anos de profissão. Estou com 74 e comecei aos 18. Contra a vontade da minha mãe, é importante dizer. Ela era parteira, mas acreditava que isso era coisa para gente velha, não para uma mocinha como eu. Achava que era vergonhoso. Mas eu insisti e nunca quis mudar de ofício.
Quer coisa mais emocionante do que ver a vida nascer? Pegar menino é uma dádiva. E ainda vejo a alegria da mãe que consegue parir naturalmente e dentro da própria casa. Senti isso na pele. Quando o primeiro dos meus três filhos nasceu, duas horas depois eu estava sentada à mesa, jantando.
Além do que parteira é amiga. Às vezes, sou a primeira a saber da gravidez, acompanho todo o desenvolvimento do feto, ensino o pai a escutar o coração do filho e só pela apalpação descubro se está sentado, de barriga para baixo, com o dorso para a esquerda ou direita. Se vejo que o bebê vai sentadinho até o nono mês, aviso que o parto tem de ser no hospital.
Foi assim com a gravidez da minha filha. Acompanhei toda a gestação, mas meu netinho acabou vindo ao mundo num hospital. Mas Deus ajudou e há cinco anos fiz o parto mais emocionante da minha vida: a Adriele, minha bisneta, nasceu em casa, ao som da minha cantoria e das minhas orações. Tem profissão melhor que a minha?
Acesse em pdf:
Parteiras querem ser reconhecidas como patrimônio imaterial do País (O Estado de S. Paulo – 03/06/2012)
‘Vou parir em casa, com ajuda de parteira’ (O Estado de S. Paulo – 03/06/2012)
‘Minha bisneta nasceu nas minhas mãos’ (O Estado de S. Paulo – 03/06/2012)
Leia também: 04/05/2012 – Campanha promove valorização das parteiras tradicionais