(Globo.com) De um lado, cerca de 15% das mulheres brasileiras que, segundo estimativas, por problemas delas ou dos parceiros, têm dificuldade de engravidar. De outro, especialistas de um mercado cada vez mais lucrativo: o da reprodução assistida. No meio, nenhuma lei, apenas normas elaboradas em 2011 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, em 2010, pelo Conselho Federal de Medicina tentando regulamentar o setor. A conclusão: regulação e fiscalização ainda muito longe da eficácia. De um total estimado de 200 clínicas que oferecem serviços de inseminação artificial e fertilização in vitro, apenas 78 cumpriram a resolução da agência que as obriga a dar informações, chamada RDC 23. A lista foi compilada pela Anvisa a pedido do GLOBO.
A norma de 2011 obrigava-as, até abril de 2012, a informar o número de ciclos (tratamentos) realizados; o número de óvulos produzidos; o número de óvulos fecundados (embriões) e o número de embriões transferidos (ao útero da mulher), congelados e desprezados. A grande maioria não cumpre tais exigências.
Estados são os responsáveis por fiscalização
O banco de dados da Anvisa é o único cadastro nacionalizado dessas clínicas, cuja certificação e fiscalização cabem aos estados. A Anvisa desconhece a quantidade de clínicas operando. A estimativa de 200 é da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH) e da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA).
Chamado Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), o banco foi criado em 2008 numa tentativa de controlar a manipulação de gametas (óvulos e espermatozoides) e embriões. Isso dificultaria abusos como os cometidos pelo médico Roger Abdelmassih, pois o governo teria mais controle sobre esses processos em clínicas particulares. O Ministério Público de São Paulo possui casos de bebês de pelo menos três casais que nasceram com o DNA da mãe e não do pai. Os casos são mantidos em sigilo de Justiça, já que Abdelmassih está foragido desde 2011 e não pode ser indiciado por esses crimes. Autoridades do MP e da Assembleia Legislativa de São Paulo — que em maio instaurou a CPI da Reprodução Assistida — desconfiam que há mais casos em outras clínicas.
O SisEmbrio também ajudaria a controlar um dilema ético: a demanda reprimida por óvulos no Brasil. Como a comercialização de gametas é proibida, eles devem ser obtidos apenas via doação e esta deve ser anônima. Com as mulheres deixando para engravidar cada vez mais tarde, seus óvulos já não têm mais a mesma qualidade. Muitas só conseguirão ter um bebê com óvulo doado. Fazer uma mulher mais jovem doar espontaneamente é muito difícil, pois ela tem que tomar hormônio e fazer uma microcirurgia.
— A solução que encontramos é ou mandar a paciente que tem condições financeiras para os Estados Unidos (onde podem comprar óvulos por cerca de US$ 3 mil) ou fazê-la pagar pelo tratamento de uma mulher de menor renda e esta, por sua vez, lhe doa os óvulos excedentes — explica o especialista em reprodução humana Nilo Frantz.
O especialista em bioética Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília (UnB), questiona:
— Isso é mercantilizar!
Segundo Garrafa, a reprodução assistida representa um dos “grandes conflitos éticos e precisa ter um controle público e social”.
Daniel Coradi de Freitas, gerente de Tecidos, Células e Órgãos da Anvisa, diz que as clínicas que não detalham suas atividades estão cometendo infração sanitária e serão notificadas.
Enquanto as clínicas omitem o que fazem com óvulos e embriões e a punição demora a acontecer, o mercado não para de crescer. Se em 2008 eram realizados cerca de 20 mil ciclos (tratamentos) por ano, a expectativa para 2012 é a realização de 30 mil — “por baixo”, segundo o especialista em reprodução humana Artur Dzik, presidente da SBRH. Levando em conta que cada ciclo custa em média R$ 15 mil, o mercado gira em torno dos R$ 450 milhões anuais.
Dzik, assim como a maioria dos especialistas em reprodução assistida entrevistados, discorda de que uma lei seja necessária. Todos, no entanto, concordam que a busca pela técnica e a ciência avançam a passos muito mais largos do que a fiscalização no setor.
— A gente tem um código de ética consistente e atualizado pelo Conselho Federal de Medicina. É o mercado quem vai regular os médicos, eliminando naturalmente os maus profissionais — diz o especialista Luiz Fernando Dale.
Para Dzik, “a coisa mais fácil que tem é provar que houve troca de DNA, é só fazer o exame”.
— Partir do princípio que há má fé ou um mercado negro de óvulos… Não dá para entrar nesse nível de desconfiança — rebate o médico, convocado para depor em nome da SBRH na CPI paulistana, presidida pelo deputado Carlão Pignatari (PSDB).
— Essa informação de que clínicas não estão em dia com a Anvisa aumenta a nossa desconfiança de que o setor precisa ser melhor fiscalizado — diz o deputado.
No Rio, onde a fiscalização acontece desde 2006, a Vigilância Sanitária Estadual lista 10 estabelecimentos, apesar de mais operarem no mercado. Só cinco foram fiscalizados este ano e apenas sete informaram dados ao SisEmbrio.
Tratamento exaustivo na esperança de ter um bebê
Um tratamento exaustivo financeiramente, emocionalmente e fisicamente. O desgaste, no entanto, é completamente esquecido quando nasce o bebê. É assim que mulheres como a advogada goianiense Flávia Aragão, de 36 anos, e a gaúcha Gabriela Tyska, de 37, definem o processo de reprodução assistida pelo qual passaram. Flávia gastou quase R$ 200 mil para dar à luz Naum, de dois anos. Foram oito anos e oito tentativas frustradas em diferentes clínicas de Goiânia. Até “alugar” o útero da cunhada ela alugou. Estava quase optando por um óvulo doado quando resolveu tentar a sorte em São Paulo.
— Na primeira tentativa, veio o Naum. Agora, cá estou eu novamente me tratando. Quero engravidar de gêmeos — conta.
— Não dá para a gente controlar tudo, saber os detalhes do tratamento. O segredo é procurar um médico bom e confiar nele — diz Gabriela, que teve Frederico e Felipe, hoje com 3 anos, após R$ 100 mil e quatro tratamentos.
Os tratamentos hormonais costumam deixar as mulheres inchadas e com os nervos à flor da pele. Há relatos de uma síndrome de hiperestimulação dos ovários que precisa ser observada. As gestações de gêmeos — comuns em até 40% dos casos — merecem cuidados especiais. Tanto que as normas recentes limitam o número de embriões a serem implantados no útero.
Médicos e especialistas que não trabalham no setor alertam para o fato de não haver uma norma limitando a quantidade de tratamentos.
— Quem garante que elas estão recebendo o tratamento adequado? Hormônios em quantidade não fazem mal à saúde? — diz o especialista em bioética Volnei Garrafa.
O Brasil não possui leis relacionadas à reprodução assistida. O que existem são normas: uma do Conselho Federal de Medicina, de 2010, e outra da Anvisa, do ano passado.
Os principais pontos são:
— A mulher não pode receber mais do que 4 embriões (óvulos fecundados) e isso deve variar com a idade Até 35 anos: até 2 podem ser transferidosEntre 36 e 39 anos: até 3 40 anos ou mais: até 4;
— A redução embrionária é proibida, mesmo em casos de gravidez múltipla;
– É proibido selecionar o sexo (sexagem) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do futuro bebê;
— Os embriões só devem sofrer interferências para tratar eventuais doenças. O tempo máximo de desenvolvimento de embriões “in vitro” é de 6 a 7 dias;
— Somente óvulos e esperma (gametas) podem ser descartados em caso de má qualidade. Embriões de má qualidade devem ser doados para pesquisa se o paciente concordar, após três anos de congelamento;
— Útero de substituição (barriga de aluguel) só é permitido caso a mulher tratada tenha algum impedimento clínico de sustentar um feto. Pagar por isso é proibido. A mulher deve procurar uma parente de primeiro ou segundo grau disposta a ajudá-la;
— Casais homoafetivos podem passar pelo mesmo tipo de tratamento dos heterossexuais e as regras são as mesmas;
— É proibida qualquer tipo de comercialização de gameta (óvulos e espermatozóides). Eles devem ser obtidos apenas via doação e esta deve ser completamente anônima;
— Não há cláusulas que imponham um limite de idade para a mulher engravidar com óvulos doados;
— Não há cláusulas que impeçam a turbinagem de óvulos (injetar o núcleo de um no citoplasma de outro), mesmo sob risco de a criança nascer com três DNAs. Os médicos não apostam na eficácia desta técnica, que caiu em desuso após o escândalo Abdelmassih;
— Só devem passar pela técnica casais com dificuldades de engravidar;
— Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) venha a produzir mais do que uma gestação de criança de sexo diferente numa área de um milhão de habitantes.
— Nenhum profissional das clínicas pode doar material genético;
— A reprodução assistida é permitida, desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material congelado;
— Cada clínica deve manter um cadastro rigoroso de até 20 anos de todo o material coletado , congelado e todos os procedimentos realizados;
— Um relatório anual deve ser enviado ao SisEmbrio sobre: o número de ciclos realizados; o número de óvulos produzidos; o número de óvulos fecundados (embriões); o número de embriões transferidos, congelados e desprezados;
— As clínicas devem possuir gerador e espaço para a saída de macas, para que as mulheres, caso haja algum problema, precisem ser levadas a um hospital;
— Não há limites para o número de ciclos aos quais uma mulher deve ser submetida;
— Mulheres solteiras podem se tratar;
– Um casal pode congelar, por tempo indeterminado, a quantidade de óvulo, esperma e embriões que quiser;
Como é em outros países:
EUA: As normas variam de estado para estado e as clínicas , que são amplamennte fiscalizadas, costumam ter grande autonomia. De maneira geral, a sexagem é permitida, assim como o aluguel de útero. A doação de óvulos e esperma é paga e gays e mulheres solteiras podem ser submetidas à técnica. Apenas o turbinamento de óvulos é proibido
França: Uma lei restringe o tratamento a casais heterossexuais numa relação estável de no mínimo dois anos. As mulheres precisam ter 43 anos ou menos. O estado paga por seis ciclos, depois tem que ser particular. A doação de óvulos e esperma é anônima e é crime pagar por ela. Qualquer aluguel de útero é proibido.
Itália: Todo embrião criado precisa ser implantado e não mais que três podem ser fertilizados. Doações de gametas e barriga de aluguel são proibidas. Somente casais heterossexuais numa união estável são tratados Alemanha: Não se pode congelar embriões, todos os óvulos fertilizados devem ser implantados. A doação e a barriga de aluguel são proibidas. Apenas mulheres casadas podem receber tratamento.
Reino Unido: Somente dois embriões podem ser transferidos em mulheres até 40 anos. As doações são permitidas, não anônimas, e há uma fila de espera de ao menos dois anos, já que o doador recebe apenas uma ajuda de custo. Aos 18 anos, os jovens têm o direito de conhecer os pais biológicos.
Espanha: Doadores de gametas recebem por isso, mas podem doar no máximo para seis tratamentos. O aluguel de útero é permitido. Solteiras e gays podem ser submetidos a tratamentos
Fontes: Conselho Federal de Medicina, Anvisa, Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (SBRH) e Global IVF (ONG americana)
Acesse o pdf: Mais da metade das clínicas de reprodução está irregular (Globo.com – 05/08/2012)