(Folha de S.Paulo) “Não conte para a mamãe”, dizia o pai da escritora inglesa Toni Maguire.
O pedido, no entanto, não era sobre uma travessura ou uma sobremesa exagerada -ele abusou sexualmente da filha por oito anos, talvez com consentimento da mãe.
A história está no livro que Toni lança agora, com título igual à frase do pai (Bertrand Brasil, R$ 34, 308 págs.). E é um entre milhares de casos, no Brasil e no mundo.
Abuso sexual é crime e assim deve ser tratado. E são justamente os adolescentes suas vítimas mais frequentes.
Geralmente confundido com estupro ou atentado violento ao pudor, o abuso tem particularidades.
Entre as situações que o configuram está incesto (relação sexual entre membros da mesma família), masturbação forçada, carícias com intenções sexuais, exibicionismo e sedução com presentes.
Em torno disso tudo, a tortura psicológica e, às vezes, o uso da força ou de algum tipo de poder.
De acordo com um levantamento deste ano da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, nos último anos triplicou o número de adolescentes que sofreram abuso e foram atendidos pelo Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Hospital Pérola Byington, referência nacional no assunto.
Cerca de metade das vítimas tem entre 12 e 17 anos, totalizando mais de 750 casos em 2011 -a conta também inclui garotos.
Enquanto adultos são geralmente abordados por desconhecidos em lugares públicos, no trajeto para o trabalho ou para a faculdade, crianças e adolescentes costumam ser violentadas no ambiente privado ou familiar e ao longo dos anos.
CRIME E CULPA
“Muitas vezes, elas mantêm um temor reverencial pelo agressor e por isso não revelam o que se passa”, afirma a psicóloga Daniela Pedroso, diretora do núcleo do Pérola Byington.
Segundo ela, é comum que haja, além da vergonha, uma espécie de culpa indevida.
“Elas passam por um período agudo de estresse pós-traumático que pode desencadear depressão, ideias de suicídio, dificuldades de relacionamento e uso de drogas. E a pessoa pode se tornar mais vulnerável a outros abusos ao longo da vida.”
Mudanças bruscas de comportamento, queda de rendimento escolar e desinteresse em atividades de rotina devem ser observados pelos familiares e amigos.
Para Raquel (os nomes das vítimas são fictícios), 22, que sofreu abuso aos 16 anos, o pesadelo veio do primeiro namorado, quando morava no interior de Minas Gerais.
“Eu era virgem e nunca tinha conversado sobre sexo. Um dia me excedi na bebida e mais tarde acordei completamente desnorteada, nua, com dor e sangrando. Ele estava rindo, como se tudo aquilo fosse normal”, relata.
Após anos de confusão mental e prejuízos nos relacionamentos, Raquel procurou ajuda psicológica.
“As pessoas tendem a condenar a mulher. Era como se eu tivesse culpa por ter bebido, e não o homem por ter abusado.”
Já Carla, 19, procurou atendimento psicológico com ajuda do namorado, após confidenciar ter sofrido abuso pelo padrasto, dos sete aos 14 anos.
“Ele tinha um ciúme obsessivo por mim e me impedia de ver os amigos. Uma tia até desconfiava, mas o resto da família dizia que ela era louca”, conta.
Os abusos aconteciam de madrugada, enquanto a mãe de Carla trabalhava. Ela tinha medo até de dormir.
“Ele me imobilizava, fazia chantagens e ameaças. Uma vez, gritei no meio da noite, mas minha mãe não percebeu. Ou fez de conta que não ouviu, para não admitir o pior. Depois descobri que ela também sofreu o mesmo no passado. Eu sou filha de um estupro.”
Em caso de gravidez originada de abuso sexual, a mulher pode optar por um abortamento legal até a 12ª semana de gestação.
“A vítima entra e sai pela porta da frente do hospital, sem sofrer qualquer represália ou preconceito”, afirma Daniela Pedroso.
Estatísticas do Pérola Byington apontam que, entre as que engravidaram em decorrência de estupro, 90% optam pelo abortamento legalizado, 9% mantêm o bebê e apenas 1% prefere entregá-lo para adoção.
Abusos contra garotos são mais raros, mas seguem o padrão mais comum: como elas, eles geralmente são vítimas de pessoas próximas.
Em qualquer que seja o caso, ou seja lá quem for o agressor, é preciso força para denunciar à polícia ou à Justiça, que têm medidas capazes de dar amparo e encontrar soluções, além de ajuda médica e psicológica.
Acesse em pdf: Sem silêncio (Folha de S.Paulo – 24/09/2012)