(O Estado de S. Paulo) As convicções de Eleonora Menicucci são conhecidas. Mas, desde que assumiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em fevereiro de 2012, passou a evitar temas polêmicos e a afirmar que sua opinião pessoal não importa. Principalmente quando o assunto é aborto: “Sigo as diretrizes do governo”.
A ministra, que é amiga da presidente Dilma Rousseff desde a década de 1960, recebeu a coluna em seu apartamento em São Paulo, na véspera de o Conselho Federal de Medicina colocar o tema novamente em pauta, ao defender o direito de a mulher abortar até a 12ª semana de gravidez. Questionada sobre se o Brasil está preparado para o debate, preferiu uma saída política.
A questão do aborto marcou a disputa entre Dilma e o ex-governador José Serra na eleição presidencial de 2010. À época, a então candidata petista se comprometeu a não adotar nenhuma medida, durante seu governo, para mudar a legislação atual, que só permite a interrupção da gestação quando a vida da mulher está em risco ou quando a gravidez é resultante de estupro.
Torturada durante a ditadura militar e companheira de prisão da presidente na Torre das Donzelas, a ala feminina do presídio Tiradentes, em São Paulo, Eleonora diz que é preciso dar “tempo” à Comissão da Verdade. “Resolver em dois anos problemas de 40 anos atrás é muito difícil.”
Com o orçamento de R$ 188 milhões – mais que o dobro de quando assumiu a pasta -, a ministra diz estar empenhada em combater a violência contra a mulher. “Nosso objetivo é acabar com o tráfico de pessoas – principalmente porque mais de 47% das pessoas traficadas são mulheres para exploração sexual – e implementar a Lei Maria da Penha em todo o País.”
Embora a meta pareça ousada, a ministra diz que as condenações do ex-goleiro Bruno (pela morte de Eliza Samudio) e do ex-policial militar Mizael Bispo (pelo assassinato de Mércia Nakashima) foram “excepcionais” para “fazer com que as mulheres mudem de atitude e denunciem seus agressores”. “Apesar de, na minha concepção, as condenações terem sido baixas, elas foram muito simbólicas.”
Confira, a seguir, os principais trechos da conversa.
A senhora acredita que o Brasil já está preparado para a discussão sobre o aborto?
Eleonora Menicucci – Temos um histórico de discussão sobre isso no âmbito da sociedade civil, sem dúvida nenhuma.
E no âmbito do governo?
Eleonora Menicucci – Como cidadã, tenho minhas convicções. Agora, desde que entrei no governo, sigo as diretrizes do governo.
O combate à violência contra as mulheres é prioridade do governo Dilma?
Eleonora Menicucci – Temos dois grandes programas na área da violência. Um deles, em parceria com o Ministério da Justiça, é o de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Mais de 47% das pessoas traficadas são mulheres – e para exploração sexual. Estamos determinados a acabar com isso até o fim do governo Dilma. Para isso, fortalecemos a campanha de denúncias. Já temos o Ligue 180 e agora estamos investindo nos núcleos especializados nas fronteiras. Queremos ampliar e qualificar esses espaços para amparar as mulheres e identificar agressores e traficantes.
O problema ganhou visibilidade com a novela Salve Jorge?
Eleonora Menicucci – Claro que ela incentiva, sim. Uma das últimas denúncias – que acabou com a quadrilha desbaratada pela Polícia Federal em Salamanca – foi feita por uma mãe depois de ver a novela. Ela acreditou que sua filha vivia situação semelhante à das personagens. Mas não é só isso. De janeiro a dezembro de 2012, tivemos 80 ligações para o Ligue 180 – a maior parte de Espanha, Portugal e Itália. A partir do momento em que fomos para a televisão falar sobre a importância da denúncia, o número de ligações subiu absurdamente. Foram 72 em três dias.
A denúncia é fundamental?
Eleonora Menicucci – Sim, porque só a partir dela pode existir um processo e um desbaratamento. Do contrário, não podemos fazer absolutamente nada. O tráfico é um crime silencioso e muito covarde. As mulheres são aliciadas, com promessas de empregos, de vida melhor. Mas chegam a seus locais de destino sem documentos, ficam confinadas e muito ameaçadas. E é importante lembrar que existe a denúncia anônima. É constitucional, está na Lei Maria da Penha.
A Lei Maria da Penha é eficaz em todo o País?
Eleonora Menicucci – Uma das nossas mais importantes preocupações é a consolidação e a implementação da Lei Maria da Penha em todo o Brasil. Para lançar o programa Mulher, Viver Sem Violência, fizemos parcerias com o sistema judiciário. Fomos eu e o ministro José Eduardo Cardozo negociar com o ministro Joaquim Barbosa e com o procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Tivemos adesão imediata.
Como se dará essa parceria?
Eleonora Menicucci – O plano prevê investimento de R$ 265 milhões em dois anos. Parte desses recursos será para a construção da Casa da Mulher Brasileira nas 26 capitais e no Distrito Federal, onde concentraremos todos os serviços para amparar as mulheres vítimas de violência: delegacias especializadas, juizados, defensorias, promotorias e atendimento psicossocial. Mas, com algumas novidades: incluímos a central de transportes – que leva e busca a mulher em casa, nos hospitais ou nas delegacias onde deram entrada -, os serviços de orientação para emprego e espaços para recreação das crianças dessas mulheres.
O que mudará?
Eleonora Menicucci – Sei bem como funciona a ponta do problema, porque, durante anos, coordenei, em São Paulo, um serviço de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual. A mulher estuprada precisa de atendimento respeitoso, digno, de alguém que acredite na palavra dela. Além disso, há um elemento essencial: a coleta da prova do estupro. Ela tem de ser coletada por um especialista, e essa prova precisa ser guardada em lugar adequado e seguro.
É uma meta possível?
Eleonora Menicucci – Tenho absoluta convicção de que, com essa parceria, conseguiremos capilarizar o combate à violência contra as mulheres para os municípios pequenos. A violência não acontece só nas capitais. Criar as varas especializadas em municípios pobres é fundamental. É o que salva as mulheres. Essas mulheres só são salvas quando vão às delegacias, às varas, e encontram uma estrutura preparada para recebê-las e auxiliá-las. É aí que está o desafio, o gargalo. A delegacia tem de estar preparada para pedir a medida protetiva ao juiz. E o juiz precisa expedir essa medida o mais rápido possível. Porque, quando a mulher toma a iniciativa de procurar ajuda, quer dizer que ela pode ser morta a qualquer momento.
Porque muitas mulheres sofrem caladas durante anos.
Eleonora Menicucci – Mais grave do que sofrer calada é ir à delegacia e ouvir do delegado: “Vou pedir a medida protetiva. Pode voltar para casa”. Ela volta para casa e a medida nunca é expedida. É esse processo que queremos mudar. Trabalhamos em parceria com o Conselho Nacional de Justiça na capacitação de juízes para desempenhar essa função.
Muitas mulheres têm medo de denunciar seus agressores?
Eleonora Menicucci – Mais do que medo, têm vergonha. Vergonha de assumir que estão sendo violentadas. Seja violência doméstica ou estupro. E sabe qual a maior vergonha? Denunciar o homem que ela escolheu para ser pai de seus filhos. É quando ela expõe a privacidade em seu nível mais alto. E isso eu falo de cátedra.
É difícil assumir um erro…
Eleonora Menicucci – Exato. E assumir na lata: “Eu errei. Ele me bate, meus filhos veem”. Essa mulher pode não ter nenhum hematoma, mas está com corpo e alma inteiramente roxos. Tenho sentido que as mulheres estão acreditando mais nas políticas públicas. As condenações do ex-goleiro Bruno e do Mizael Bispo são excepcionais para fazer com que as mulheres mudem de atitude e denunciem seus agressores.
A senhora acha que as penas (22 anos para o Bruno e 20 para o Mizael) foram baixas?
Eleonora Menicucci – Na minha concepção, as penas foram baixas. Por outro lado, também foram muito simbólicas. Só o fato de eles terem sido condenados e expostos publicamente já é uma vitória. Porque os crimes contra as mulheres têm se tornado cada vez mais cruéis. Matar já é cruel, mas afogar, decepar, dar para o cachorro, não achar o corpo. Isso é de uma crueldade incrível.
Crê que o fato de o Brasil ter uma presidente mulher mudou a visão da sociedade?
Eleonora Menicucci – Sempre digo que o século XXI é o século das mulheres. As mulheres podem e sabem fazer. Até as crianças estão vendo isso. Ter uma presidente mulher tem um impacto muito grande. E nós, na secretaria, temos um papel importantíssimo. Estamos trabalhando para incentivar as mulheres a entrarem na política. Hoje, no Congresso Nacional, apenas 8% são mulheres – entre senadoras e deputadas. É muito pouco. Dos 5.570 municípios, apenas 657 são comandados por prefeitas. E elas estão, em grande parte, nas cidades pequenas. Temos uma única prefeita de capital: a Teresa Surita, em Boa Vista. E duas governadoras, a Rosalba Ciarlini (Rio Grande do Norte) e a Roseana Sarney (Maranhão).
Existem políticas para as mulheres homossexuais?
Eleonora Menicucci – Temos uma coordenadoria da diversidade. Sou defensora dos direitos GLBT. São pessoas, seres humanos iguais a todos. Não há diferença nenhuma. A homofobia é um preconceito, uma violência.
Como a senhora viu a nomeação do pastor Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara?
Eleonora Menicucci – É uma questão do Congresso Nacional. Como ministra de Estado, não posso, não quero e não vou me meter nisso. Acho que a sociedade tem de se mobilizar para dar a resposta necessária à questão. Não se pode simplesmente acabar com a Comissão de Direitos Humanos. Tenho real esperança de que o Congresso vai resolver isso.
O que acha da atuação da Comissão da Verdade?
Eleonora Menicucci – Historicamente, foi fundamental a criação da Comissão da Verdade. E nós, do Executivo, não nos intrometemos em seu funcionamento. Ela é autônoma. Para mim, como ex-presa política, a instalação da comissão foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida.
Há críticas em relação ao trabalho da comissão.
Eleonora Menicucci – A comissão tem de ter seu tempo para trabalhar. Precisa de tempo. Resolver em dois anos problemas de 40 anos atrás é muito difícil. A comissão tem dado resultados muito bons. Vimos a entrega do novo atestado de óbito de Vladimir Herzog à família do jornalista, assassinado em 1975; a descoberta dos documentos que mostram que Rubens Paiva foi morto sob tortura. E tantos outros virão à tona. Tenho certeza de que a comissão entregará um relatório exitoso.
Acesse o pdf: ‘O crime contra a mulher está mais cruel’, diz Eleonora Menicucci (O Estado de S. Paulo – 25/03/2013)