(Observatório da Imprensa) Na capa, uma chamada atraiu os meus olhos: “Células-Tronco – As novidades para deixar o rosto jovem em minutos”. Como nasci mulher e loira, ou seja, sou geneticamente incapaz de ter senso crítico, e além de tudo os 50 anos estão mais perto do que longe e sei que o Photoshop não presta para o dia a dia, fui direto à matéria. Maravilha! As células-tronco prometem corrigir tudo! Leio: “devolver à pele o viço, elasticidade e corrigir defeitos da idade”. Também vou guardar a revista para minha filha adolescente, porque – segundo o artigo “Células-tronco para uma pele jovem”, da revista Corpo a Corpo (Editora Escala) – a injeção também melhora as cicatrizes da acne e outros defeitos da pele. Na visão sobre o assunto oferecida pela repórter que entrevistou a dermatologista Dayse D’Ávila, o método é simples e seguro.
Porém, mulheres, alguém tem que contar como é a realidade, mesmo que seja ruim. O que diz a matéria não é tudo verdade. Especialmente a última palavra: seguro.
Deixo para os estudiosos da comunicação avaliar a peça jornalística pelo Index of Scientific Quality (Índice de Qualidade Científica) e dar um resultado entre um (baixa qualidade) e cinco (alta qualidade). Para isso, eles terão que medir o grau de clareza do texto em relação a seu público-alvo, a distinção clara entre opiniões e informações, o nível de evidência e credibilidade das fontes utilizadas, o fundamento em relação a suas afirmações e ter comprovado que apresenta claramente os benefícios e riscos.
Porém, como o que melhor sabemos fazer os jornalistas é contar histórias verdadeiras, vou contar uma, publicadana Scientific American, que vai ajudar os leitores a dar o seu veredicto.
Era uma vez uma mulher que chegou numa luxuosa clínica estética da Califórnia, The Morrow Institute, reclamando que não conseguia abrir o olho direito. Quando o médico pediu para ela tentar, ela reclamou de dor. Alem do grito, do corpo da mulher saiu outro som, como se fosse uma música rítmica, feita com castanholas. O cirurgião, Allan Wu, convidou-a logo para ir ao centro cirúrgico. O que ele achou ao cortar a pele, entre a sobrancelha e o olho, ninguém esperava.
As pinças cirúrgicas começaram a extrair pedaços de osso, um depois de outro… demoraram seis horas para acabar. O inexplicável era que os ossos estavam isolados, e o crânio não tinha nenhuma fratura. Um enigma para a ciência? Não por muito tempo. A resposta estava no prontuário.
Três meses antes, a mulher tinha recebido – em troca de 20 mil dólares – injeções de células-tronco em uma clínica de Beverly Hills. Como na técnica recomendada na matéria brasileira, as células tinham sido obtidas da própria gordura da paciente, da região abdominal. A única diferença é que as células-tronco foram colocadas junto a um material de recheio clássico, que contém um mineral (hidroxiapatita de cálcio). O procedimento médico tinha dado bons resultados estéticos. O problema estava na natureza.
O que aconteceu foi que as células-tronco (que em condições normais não estariam lá) aproveitaram o mineral disponível (que se não fosse pelo procedimento estético também não estaria lá) para construir pedaços de osso (que, logicamente, não deveria crescer ali). Ou seja, tendo os elementos, a natureza simplesmente atuou segundo as suas próprias e conhecidas regras. Pena que não era o que a mulher esperava.
As células vivas não são um remédio como qualquer outro. Células-tronco são celebres porque podem se transformar em diversos tipos de tecido. Isto tem sido obtido em laboratório e, em alguns casos como o relatado, no corpo dos pacientes. O lado B desta terapia biológica é que as células-tronco podem diferenciar-se em tecidos que não sejam os desejados, podem crescer de forma pouco controlável, podem gerar cartilagem, osso, ou outros tipos celulares, sem que se possa controlar a quantidade e o formato. É por isso, justamente, que ainda não estão permitidas na prática médica. Porque ainda há muita insegurança no processo, não pelos resultados estéticos.
A história relatada começa no ano de 2009. E acaba? Ninguém sabe. As células-tronco ainda estão lá. “Pode acontecer de novo”, advertiram à paciente arrependida. Paradoxos dos tratamentos biológicos: têm uma aura de saudáveis que nem sempre tem correspondência com a realidade.
Da história americana há muitas leituras, entre elas a de que terapias com células-tronco potencialmente perigosas se oferecem como tratamento de beleza até nos países mais sérios. No Brasil, é sabido que há profissionais oferecendo tratamentos com células-tronco sem ter havido sequer consenso sobre sua validade prática. E, afinal de contas, não é aceito pelas autoridades de saúde. Os pacientes podem cair na armadilha por pensar que, se um tratamento é oferecido em um consultório bonito, e o profissional até der um recibo pelo pagamento, é evidente que se trata de uma prática legal. Porém, no Brasil, como em muitos países, não há uma lista de procedimentos permitidos ou proibidos, e todos são cientes disso: falta fiscalização para impedir a comercialização de terapias não comprovadas. (Voltando ao caso americano, qualquer médico no Brasil pode colocar as células-tronco junto ao mineral, como no exemplo dado, porque não há um método único recomendado pelas associações profissionais).
Um paciente pode ser enganado por um médico que desrespeita as regras. O jornalista não pode, ele é responsável pelo que publica. A imprensa generalista pode não saber de tudo, mas tem que saber entrevistar. A resposta da pergunta certa para esta matéria é que a única terapia com células-tronco comprovada e aprovada no mundo para uso em humanos é o transplante de medula óssea. O resto é experimental. O que significa? Muitas coisas; entre elas, por exemplo, que não há garantias. E que se alguém fizer, tem que ser gratuita.
Entre nós
Todas as revistas femininas dedicam a maioria das suas páginas – excetuando moda – a assuntos relacionados à saúde. O interesse das leitoras pela medicina não é mais do que um reflexo de uma mudança de atitude na qual os pacientes se encarregam de sua própria saúde e buscam informações em todas as fontes possíveis. As mulheres ainda mais, responsáveis pela saúde de varias gerações da família.
O contato entre a mídia e as vozes especialistas é, por sua vez, cada vez mais fluido, facilitado pelas assessorias de imprensa cada vez mais populares no setor médico. Porém, em muitos casos, a busca midiática responde a razões de estratégia de marketing pessoal. A ingenuidade ou falta de capacitação de alguns jornalistas, somada às pressões de diferentes origens, pode fazer estragos.
É lamentável que, na busca pelo apelativo, muitas vezes se esqueça de que o essencial deveria continuar sendo a qualidade da informação, ainda mais quando pode haver consequências gravíssimas como é o caso dos artigos de conteúdo médico. As notícias sobre dietas, por exemplo, deveriam ser tratadas com o rigor imposto à prescrição de um tratamento para obesidade. Não é o que acontece. Em geral, as dietas publicadas oferecem a metade dos minerais necessários, falta a elas cálcio e ferro, e têm menos vitaminas do que o adequado para o funcionamento correto do organismo [ver aqui].
Em conclusão, o boom informativo sobre medicina pode ter efeitos contraproducentes se à quantidade não forem incorporadas doses crescentes de qualidade. Na mesma edição da matéria das células-tronco há, dez páginas depois, outra matéria de título autoexplicativo “Bisturi, aí vou”. Esta, como é devido, tem dentro de um box um texto menor, porém de titulo acertado: “Todo cuidado é pouco”.
Nas primeiras páginas da mesma revista, há um espaço fixo que se chama Entrenós. Claramente, é uma conversa amigável, íntima, com as leitoras. Nós é uma referencia às outras mulheres.
Gostaria de ter uma conversa assim com os jornalistas que fazem as matérias de saúde nas revistas femininas. Ou talvez não seja necessário, não acho palavras melhores para dizer do que as que a editora Karine César colocou naquele Entrenós para suas leitoras:
“Basta um comentário colocado de forma equivocada para que toda nossa segurança vá por água abaixo. Leva muito tempo para percebermos que um mundo cheio de regras e julgamento serve para nos nortear e motivar… Mas não pode nunca nos paralisar”.
É assim mesmo. As matérias de medicina das revistas femininas fazem muita diferença na vida das leitoras e suas famílias. É preciso apenas tentar fazê-las cada dia melhor. É fácil: em saúde, geralmente isso se alcança com o respeito a algumas regras.
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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia: medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (lançamento previsto da edição em português para setembro de 2013, pela Editora Summus)
Acesse o PDF: Jornalismo com contraindicação nas revistas femininas (Observatório da Imprensa – 16/07/2013)