(O Estado de S. Paulo, 22/03/2014) Em 2002, 1.655 mulheres morreram por complicações na gravidez. Uma delas foi a vendedora Alyne Pimentel, de 27 anos. Aos seis meses de gestação de Ester, sentiu-se mal e procurou a maternidade em que fazia pré-natal, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Alyne sangrou quase um dia inteiro, até ser transferida para um hospital. Foi reanimada. Como não enviaram a ficha médica, passou 8 horas no corredor. Morreu em 16 de novembro. Na véspera, Ester havia sido enterrada.
Nesta terça-feira, a mãe de Alyne, Maria de Lourdes Pimentel, de 64 anos, vai receber indenização do governo federal. O caso, considerado emblemático por reunir uma série de problemas enfrentados por mulheres de todo o Brasil, foi denunciado à Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2011, o Brasil foi condenado pela morte de Alyne – primeiro caso de mortalidade materna julgado pelo Comitê da ONU para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra Mulheres (Cedaw, na sigla em inglês). Lourdes já sabe o que vai fazer com o dinheiro: contratar um plano de saúde.
“Dinheiro não vale a perda da minha filha. O que importa é o Brasil ter sido condenado. Se não fosse essa ONU, a justiça não teria sido feita. Mas até hoje há grávidas morrendo nos hospitais”, diz Lourdes, que tem um casal de filhos e hoje cuida da filha de Alyne, Alice, que tinha 5 anos quando a mãe morreu. “As coisas têm de melhorar. Eles vão indenizar todo mundo? Eu briguei não foi um dia, não foi um mês. Foram 12 anos. É mais pelo futuro das outras mães.”
Lourdes prefere não revelar o valor da indenização que vai receber, mas ela diz “que não é muito e nem dá para comprar uma casa”.
Abandono
O que aconteceu com a vendedora de 27 anos é uma história já conhecida – pré-natal precário, instituições sucateadas, médicos despreparados. Com forte crise de vômito e dores, procurou a clínica em que era atendida, conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Foi medicada com remédios para náusea, vitamina B12 e cremes vaginais.
Voltou ao ambulatório dois dias depois. O coração de Ester já não batia. Uma ultrassonografia – que teve de ser paga pela família, apesar do convênio com o SUS – mostrou que a bebê estava morta.
“Ela vomitava até sangue. Dei um banho nela, penteei os cabelos. Minha filha era vaidosa e passei perfume. Induziram o parto. Eu ouvia os gritos dela. Fui para casa, dormi um pouco, enterramos o bebê. Quando eu voltei, o médico disse que ela podia morrer. Era uma da tarde e ele perguntou se eu não tinha uma clínica para levá-la.”
Alyne estava com hemorragia. A instituição não tinha Unidade de Terapia Intensiva (UTI), ambulância, setor de transfusão de sangue. Somente às 20h, a vendedora foi transferida para o Hospital Geral de Nova Iguaçu, referência para a Baixada Fluminense. Chegou com parada cardiorrespiratória e precisou ser reanimada. “Os médicos me disseram: ‘Não fizeram nada por ela’.” Alyne entrou em coma e morreu no dia seguinte.
“A condenação é mais do que simbólica. Na prática, é muito forte”, comemora Angela Freitas, integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras, que acompanha o caso de Alyne desde o início. Além da indenização, será instalada uma placa dando o nome de Alyne à UTI da Maternidade Mariana Bulhões, em Nova Iguaçu.
3 PERGUNTA PARA…
Sandra Valongueiro, médica e demógrafa
1.Qual é a sua análise sobre a assistência materna no Brasil? O Ministério da Saúde tem feito esforço para reduzir a mortalidade materna, mas há uma questão estrutural que tem de ser alterada. O foco que se tem trabalhado é centrado no hospital e no médico. A Rede Cegonha (programa federal de redução de mortalidade na gestação) trabalha com a possibilidade de tirar o parto da mão dos médicos, mas isso não acontece na prática. É preciso formar enfermeiras obstétricas.
2. Por que a senhora defende “tirar o parto da mão dos médicos”? As mulheres chegam aos hospitais e não há leitos para serem atendidas. Ou não tem a equipe completa, com médico, anestesista, pediatra. Então não são recebidas e têm de peregrinar. Para mudar, é preciso romper com a mentalidade de que só médico faz parto; eles não dão conta. A Rede Cegonha tem proposta de centros de parto normal. Mas são os Estados e municípios que executam as políticas. O hiato é muito grande. As mulheres vão de porta em porta, são atendidas em maternidades lotadas, o que impede a presença do acompanhante. São violações cotidianas de direitos.
3. Como a senhora vê o fato de que casos como o de Alyne continuam ocorrendo no Brasil? Muitas Alynes ainda vão surgir. Elas ainda morrem por causas ligadas à gestação, como eclâmpsia, infecção, hemorragia. Mas morrem também por doenças crônicas como diabetes, HIV, câncer. Houve uma mudança no perfil – elas têm filhos mais velhas e têm vários fatores associados a esse envelhecimento. E o serviço de saúde ainda não dá conta de doenças típicas, como eclâmpsia e pré-eclâmpsia. É um quadro muito sério.
Acesse o PDF: Caso Alyne Pimentel: Sai a primeira indenização federal por morte na gravidez