(BBC Brasil, 23/04/2014) Em janeiro deste ano, a revista Ya, do jornal El Mercurio, a publicação feminina mais lida do Chile, resolveu parar de retocar as fotos de modelos com a ajuda do programa Photoshop. A editora de revistas do jornal, Paula Escobar, explica as razões da mudança e as reações provocadas por ela:
Uma contradição passou a rondar as reuniões de pauta da revista Ya.
Por um lado, queríamos falar de temas relevantes sobre a mulher moderna e com pés no século 21, como prova nossa cobertura de assuntos da atualidade, de questões sociais e de entrevistas com mulheres influentes, como a empresária e ativista Sheryl Sandberg, a presidente Michelle Bachelet, várias ministras e reitoras de universidades, economistas e empreendedoras.
Mas as páginas de moda e beleza – as seções mais tradicionais de uma revista feminina – iam contra esse princípio: com frequência, exibiam modelos muito jovens e magras que eram assim de verdade ou, pior, que eram rejuvenescidas ou “perdiam peso” com as técnicas do Photoshop que alguns de nossos fotógrafos externos usavam, apesar de pedirmos para não fazerem isso.
Começamos a persuadir estes fotógrafos e as agências a nos enviar modelos mais velhas e com corpos mais saudáveis e que suas fotos não fossem alteradas digitalmente.
Mesmo assim, não funcionou completamente, porque muito têm uma visão de estilo e beleza que está ligada aos corpos mais jovens e andróginos.
Sua ideia de beleza, por assim dizer, é sem curvas, sem rugas, sem carne ou sem marcas do tempo. Sem humanidade.
Que liberdade é essa?
Ao mesmo tempo, tanto no Chile como em outras partes do mundo, duas epidemias avançam: os problemas alimentares e a cirurgia plástica, ambos consequências desta cultura que impõe um ideal de beleza tão inalcançável quanto irreal e muitas vezes perigoso para a saúde.
Se não se pode nem comer ou envelhecer, qual é a liberdade que estamos propondo para essas mulheres?
É paradoxal que o século 21, quando as mulheres têm mais direitos do que nunca, seja o século onde prevaleça a ideia de que, para ser bela, deve-se ter um determinado tipo de corpo que não o seu próprio e, além disso, um tipo que requer privação de alimentos.
Por esse motivo, os corpos anoréxicos dizem muito sobre nossa sociedade, que diz que mulheres têm uma liberdade sem limites, e ao mesmo tempo impõe essa rejeição de seu próprio corpo.
Exemplos internacionais
Depois de muito buscar, nos inspiramos em várias iniciativas internacionais.
Primeiro, estudamos o projeto de 2008 da deputada francesa Valerie Boyer, que, mesmo não tendo sido promulgado, deu início ao debate. Roselyne Bachelot, então ministra da Saúde da França, assinou a “Carta de Compromisso voluntário sobre a imagem corporal e contra a anorexia”.
Alguns anos antes, o governo havia começado um movimento parecido na Itália para regular a idade e o peso da participação de modelos nos eventos em Milão, a capital da moda italiana, e recomendar que não fossem contratadas jovens com um índice de massa corporal (IMC) inferior a 18,5 – determinado por uma proporção entre o peso e a altura – ou menores de 16 anos.
Também foi muito útil a recente lei aprovada em Nova York que estende a modelos menores de 18 anos os benefícios de qualquer outra criança que trabalha no mundo dos espetáculos.
Essa lei impõe limites rígidos de tempo e horário de trabalho e cria um processo burocrático que busca desestimular o uso de meninas como modelos.
Mudança cultural
Tendo em vista estes exemplos e nosso compromisso com nossas milhares de leitoras, criamos a Campanha de Boas Práticas.
Numa iniciativa de autorregulação inédita no Chile, nos comprometemos em nossas páginas editoriais a contratar modelos maiores de 18 anos e com um índice de massa corporal acima de 18,5, que é o estabelecido internacionalmente como um peso normal, certificado por um médico; a não usar o Photoshop para alterar a imagem real de uma pessoa; e a promover a reflexão sobre a imagem da mulher nos meios de comunicação, por meio de um seminário anual e fóruns com mulheres líderes nos meios de comunicação de nosso país.
Foi a nossa maneira de resolver essas contradições entre o discurso a favor da mulher e certas práticas da fotografia de moda e beleza.
Tem sido um caminho complexo, com vários obstáculos, mas também com aliados.
A principal dificuldade é cultural: é preciso pensar as reportagens por outra lógica e especialmente romper com a ideia de que o corpo mais bonito é magro e jovem.
Desconstruir de certa forma a própria ideia do que é belo e dar a ela um novo significado, de acordo com a realidade chilena. E também evitar o tom de regra aos conselhos de beleza: fugir da armadilha de dizer que as mulheres “devem” consumir certas coisas para “serem” aceitas.
Nas revistas de estilo masculinas, o tom é mais lúdico e divertido. Estão orientadas ao prazer, não ao “dever ser”. Aí está outra inspiração.
Mesmo que alguns fotógrafos tenham me considerado exagerada ou dogmática, muitos se uniram com gosto à nossa campanha, porque estavam fartos do excesso de retoques digitais, que, ao serem mal usados, fazem com que a fotografia verdadeira seja criada no computador e não na realidade.
Por fim, várias agências de modelos quiseram participar e enviar suas modelos a uma consulta médica para obterem o certificado de idade e peso normal.
Muitas mulheres influentes e formadoras de opinião também apoiaram nossa campanha.
Agora, estamos próximos de realizar nosso primeiro seminário sobre o tema.
Convidaremos a uma reflexão sobre as mulheres e sua representação nos meios de comunicação, não só nos jornais e nas revistas, mas também na televisão, no cinema e outros.
Sabemos que é só o começo, mas isso nos enche de esperança de que seja possível ajudar para que nossas filhas deixem de sonhar em ser bonecas quando crescerem e aceitem-se como são.
(*) A jornalista Paula Escobar Chavarría é editora de revistas do El Mercurio e autora de três livros. Em 2006, foi eleita uma das 100 mulheres líderes do Chile e nomeada Jovem Líder Global pelo Fórum Econômico Mundial
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