(G1, 20/11/2014) Foi necessário promulgar uma Lei (10.639/03), há pouco mais de dez anos, para que as escolas passassem a ensinar história e cultura afro-brasileira, incluindo temas como história da África e dos africanos, a luta dos negros no contexto brasileiro e sua contribuição nas diversas áreas da história e da cultura do Brasil.
Isso porque, embora sejamos um país em que a maioria da população é negra e parda, a história sempre foi ensinada com um viés eurocêntrico, em que os colonizadores são ousados, atravessam oceanos e, para levar adiante seus planos, tornam-se senhores de escravos. A ideia de escravidão é introduzida nas primeiras séries escolares com certo ar de naturalidade. O negro entra como objeto trazido à força de um continente “primitivo”; um ser sem passado nem vínculos sociais, que aceita de forma omissa e acomodada um destino desumano e humilhante. Como as crianças brasileiras podem sentir orgulho de suas origens e sua identidade com essa forma de descrever seus antepassados?
Nos livros didáticos, depois dos capítulos que falam da escravatura, os negros praticamente desaparecem dos textos, como se a história continuasse sem a sua participação. As imagens mais importantes são reservadas aos personagens brancos de cabelos louríssimos, como na capa da coleção “Infância Brasileira”, uma das mais adotadas na década de 60.
A imagem do negro no mundo do trabalho é muitas vezes desvalorizada de forma implícita. Uma conhecida cartilha escolar pede que o aluno escreva o nome das profissões e apresenta os desenhos de um menino branco vestido de médico, outro vestido de juiz e um menino negro em funções subalternas.
Reproduzindo o cenário sociocultural, o sistema de ensino também reserva ao negro, até em função de suas condições sociais e de renda, uma trajetória escolar incerta, na qual continuar estudando é uma conquista diária.
Assim, a educação contribui para reforçar o racismo, ora explícito ora velado, que existe na sociedade brasileira.
Porque foram educados, em casa e na escola, com narrativas que apresentam o negro como inferior e coadjuvante, muitos ainda hoje têm dificuldade de aceitar que ele possa chegar a altos níveis de formação ou que ocupe posições sociais importantes. É forte, em alguns grupos, o sentimento contra qualquer política de reparação da dívida social contraída nos tempos da escravidão.
Ações afirmativas como as cotas para as universidades ajudam a atenuar, ainda que de um jeito capenga, o abismo educacional forjado na época da colônia e que, se não fosse por força de lei, dificilmente seria superado neste século.
A Lei 10.639/03, sobre ensino de história e cultura afro-brasileira, é uma ruptura no ciclo educacional que perpetua o racismo. Propõe que as crianças aprendam uma nova história, mais realista e respeitosa, a partir de conteúdos sobre as lutas de libertação que o negro trava até os dias atuais, em busca dos seus direitos de cidadão.
A proposta ainda não foi totalmente tirada do papel, mas escolas e famílias deveriam levá-la a sério. Trazer para o debate os problemas raciais da sociedade, rejeitar o preconceito e ensinar as crianças a fazer o mesmo. Valorizar a diversidade e a igualdade. Ficar atentos aos materiais didáticos, verificando se incluem a valorização da cultura negra.
Esse resgate não interessa só aos negros, mas a todos os estudantes, porque os prepara para viver como cidadãos atuantes num país pluriétnico e multicultural e ajuda a desconstruir os mitos de inferioridade e superioridade entre culturas, valorizando a riqueza de uma de nossas marcas distintivas, a miscigenação. Não é suficiente para garantir que a população negra seja mais bem tratada na escola e na sociedade, mas é um passo para reduzir as injustiças e emancipar muitos jovens das lentes caducas com que aprenderam a ver o mundo.
Acesse no site de origem: A educação de hoje perpetua o racismo?, por Andrea Ramal (G1, 20/11/2014)