(Último Segundo, 25/03/2015) À frente de estudo sobre preconceito contra domésticas, Juliana Teixeira diz que ‘empoderamento’ das empregadas contribui para acirramento das relações com patrões
Prestes a concluir seu doutorado em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Juliana Teixeira pesquisa “as artes e práticas cotidianas de viver, resistir, cuidar e fazer das empregadas domésticas”. Em seu estudo, ela analisou as publicações de uma comunidade virtual do extinto Orkut, intitulada “vítimas de empregada doméstica”. A conclusão é de que ainda hoje permanece um sentimento “saudosista das relações de escravidão” quando se fala em patrões e empregadas no Brasil.
De acordo com a administradora, a internet apenas facilita a exposição de um “preconceito que ainda é muito velado no nosso país”, com raízes nas desigualdades de gênero, raça e classe. Entre os fatores que contribuem para essa exposição, Juliana cita a sensação dos internautas de estarem conversando com amigos e pessoas do mesmo ciclo social, além de uma máscara humorística e de uma falta de impunidade.
A pesquisadora explica também que a ascensão de classes mais pobres e um certo “empoderamento” das empregadas domésticas contribui para um crescente acirramento na relação com seus patrões e patroas. “A gente ouve todo tipo de absurdo, como ‘agora não tem mais graça ir pra Miami, porque até meu porteiro vai’ ou aquela coisa ‘aeroporto ou rodoviária?’. Na verdade, esse empoderamento traz uma espécie de ameaça à exclusividade de acesso a determinados espaços. As pessoas não querem perder seu status exclusivo”, critica. “Isso precisa ser encarado por aqueles que sempre negaram o preconceito e defenderam o mito da igualdade racial, porque é uma forma de tirá-los da zona de conforto.”
Confira a entrevista
Por que essas pessoas se sentem tão à vontade em fazerem esse tipo de comentários na internet?
Acho que o fato de ser na internet faz com que esse preconceito seja muito mais explicitado, mas na verdade são manifestações que já estão na sociedade há um bom tempo —contra negros, pobres, mulheres em geral. O que muda é que essas pessoas encontraram um novo espaço pra se manifestarem. Lá, ao mesmo tempo em que elas explicitam um preconceito que ainda é muito velado no nosso país, por outro lado não estão colocando a cara a tapa. Não é como se fosse uma conversa pessoal onde as pessoas podem ser facilmente identificadas.
Onde que a gente pode observar esse preconceito velado?
Na verdade, a gente tem um sério problema de lidar com a situação do preconceito no país. Durante um bom tempo, vendeu-se essa imagem de que o Brasil era uma democracia racial. Era o mito da democracia racial. Até a Unesco chegou a vir fazer pesquisas no país, para tentar aprender com a experiência e levá-la para outros países. Só que, quando eles vieram, isso caiu por terra. Foi observado como a gente tem uma sociedade muito desigualmente estruturada. Quando a gente pega a questão racial, a gente ainda tem um “gap” e um distanciamento muito grande em relação à posição social ocupada por negros e brancos. Imagina há alguns anos atrás, em que isso era ainda pior.
Você acha que nas redes sociais as pessoas se sentem mais à vontade porque é como se estivessem conversando com um grupo de amigos?
Uma questão que tem acontecido muito é o fortalecimento da ideia de um senso coletivo, de pertencimento a um grupo “que pensa como eu”. Quando eu analisei o Orkut, era uma comunidade criada especificamente para essa função. Eram patroas falando sobre suas empregadas. Ali, elas se sentiam super confortáveis em explicitar o preconceito com relação a suas empregadas. Nessa página “A minha empregada” é engraçado porque ela reúne publicações aleatórias que usaram as palavras “minha empregada” e a gente percebe como as pessoas estão se sentindo à vontade para dizer isso. Por isso que eu vou bater nessa tecla de serem “pessoas que pensam como eu”. Ali no Twitter você está entre amigos, família, geralmente pessoas do mesmo grupo social, com as quais você sabe que não vai ter rejeição ao que você está falando. Embora essas redes possam ter uma repercussão maior, num primeiro momento é como se elas tivessem postando coisas entre amigos, num ambiente mais restrito.
Quando esses comentários acabam tendo mais repercussão, muita gente tenta justificar dizendo que era “só uma piada”.
É que tem outras raízes pra gente tentar entender porque essas pessoas se sentem à vontade. Na maioria das vezes, elas jogam com preconceitos que já estão bastante enraizados e que vão muito facilmente pra esfera do humor. Se você observar esses posts, eles são quase sempre direcionados pra questão do humor, que é uma ferramenta discursiva historicamente usada para despertar preconceitos. Quando eu coloco sob a justificativa do humor é como se eu abrisse possibilidades para falar o que eu quero e sair da barreira do politicamente correto. Eu vou pra outra dimensão, justifico dizendo que não é o que eu realmente penso, que eu estava só brincando.
Na sua pesquisa, você estudou exatamente o preconceito contra empregadas domésticas. O que explica essas relações?
Acho que tem três dimensões importantes pra gente pensar. Primeiro, a questão de gênero. É uma atividade marcada pela divisão histórica de papeis femininos e masculinos, com uma subalternidade da mulher em relação ao homem e uma naturalização da atribuição das tarefas domesticas às mulheres. Por isso, a gente vê que mais de 90% das empregadas são mulheres. Com essa naturalização, o trabalho delas é desvalorizado, porque é como se elas estivessem simplesmente fazendo aquilo que é seu papel.
Em segundo lugar, tem um recorte de classe importante e um preconceito dos mais ricos em relação aos mais pobres. Esses posts geralmente têm uma visão estereotipada dos pobres, muito ligada à questão da ignorância, de não saber escrever, falar. Há sempre uma ridicularização da falta de escolaridade, além dos estereótipos perigosos que relacionam esses pobres, com menos recursos, a alguém que seria mais propenso a roubar, como pessoas criminosas. Por último, tem a questão racial e a naturalização do papel de servidão do trabalho doméstico. Embora a gente esteja a anos da abolição da escravatura, essa visão de que a empregada alguém que vai me servir, num contexto em que a maioria das empregadas é negra, vem dessa época.
A conquista de mais direitos trabalhistas e essa mudança na relação entre empregadas e patrões contribui pra um acirramento?
Hoje, as empregadas acabaram adquirindo um pouco mais de autonomia, no sentido de que há um aumento da escolaridade, uma diminuição no número de mulheres que querem seguir as atividades domésticas como uma profissão, especialmente entre as jovens. Tem também uma outra dimensão, que é o fato de que há uma escassez de empregadas domésticas que querem trabalhar como mensalistas, pois a boa parte agora quer ser diarista. Isso é interpretado por pessoas preconceituosas como se essas mulheres não quisessem trabalhar, como se estivessem recusando aquele papel do cuidar e da servidão que lhes era natural. Aí, elas vão dizer “ah, agora, elas estão cheias de nove horas”. Aquele curso oferecido por aquela mulher (Lisa Mackey), tem tudo a ver com isso. Hoje, elas recusam determinadas atividades, rompem com o ideal da servidão e provocam reações negativas. Então, é muito mais fácil virar motivo de chacota.
Ao contrário do que você estudou no Orkut, os comentários reunidos no Twitter são feitos na maioria das vezes por jovens e adolescentes. Falta um trabalho educativo, junto a essas pessoas?
Tem vários estudos que falam muito nessa questão, sobre como esse preconceito é perpetuado nas famílias. Mesmo que você não fale abertamente contra as empregadas, as crianças observam como são as relações porque convivem com essa realidade dentro de casa – onde ocorre essa socialização primária. Essa criança cresce vendo de quem é a função de lavar prato, preparar a comida, arrumar o meu quarto, minha casa, fazer a coisa do jeito que eu quero. Quando eu tenho uma família que distancia completamente as atividades da empregada das atividades dos outros moradores da casa, a criança vê isso. É uma relação complexa – há sempre um mito de afeto e desigualdade, proximidade e distanciamento.
Tem até um sociólogo, o Ronaldo Sales, que chama essa relação brasileira de “complexo de Anastácia”, recorrendo à personagem do Monteiro Lobato. A empregada é quase da família, como se fosse da família. No entanto, a condicionante do “quase” sempre está presente. Isso traz uma relação muito complexa no sentido de que é alguém que está próximo de mim, mas é diferente. Esse jovens que estão escrevendo isso na internet aprenderam isso dentro de casa. Mas, no espaço da escola, onde ocorre a socialização secundária, isso também não é discutido.
Até porque nas escolas essas mesmas pessoas geralmente desempenham as funções de limpeza, portaria e os chamados serviços gerais, né?
Exatamente. Nas escolas a gente também identificar as mulheres negras e pobres com essas funções. A gente naturaliza, não há um questionamento. Por que que eu chego nos lugares e as mulheres negras estão envolvidas em atividades mais precárias? A gente não para pra pensar nisso no ensino básico, nem no ensino superior. Há sempre uma dificuldade imensa de colocar isso em discussão.
Vou dar um exemplo. Eu sou professora do curso de Administração, na Universidade Federal de São João Del Rey (MG) e criei uma disciplina chamada “Gênero, raça e trabalho”. Isso causou um grande estranhamento e uma resistência dos alunos, porque a gente não se acostumou a falar sobre isso. E, à medida que isso é constantemente perpetuado, eu vou achar engraçadinho falar mal da minha empregada, até porque isso é, implicitamente, um sinal de status entre amigos. Dizer ‘eu tenho uma empregada’, num contexto em que está ficando cada vez mais difícil ter empregada porque agora a gente tem que pagar direitos trabalhistas.
Esse preconceito contra as empregadas seria uma forma de demonstrar esse status, então?
Talvez haja uma intensificação, até, desse preconceito, muito em função de a gente estar neste contexto político em que houve um certo empoderamento dessa classe. Infelizmente, eu vejo que a tendência é o acirramento destas manifestações de preconceito. Mesmo num país que está convivendo com cotas raciais, a gente vê que as pessoas não se acostumaram a discutir a questão racial. A gente observa a intensificação no discurso de que pobres são preguiçosos, não estão se esforçando e se aproveitam de programas como o Bolsa Família. Essa coisa da meritocracia.
Há um contexto que por si só aumenta a expressão desses preconceitos. Lá no Orkut, quando já era o Governo Lula, elas falavam abertamente sobre como era difícil encontrar uma empregada porque agora elas não queriam mais saber de trabalhar, por causa do Bolsa Família. A gente ouve todo tipo de absurdo, como ‘agora não tem mais graça ir pra Miami, porque até meu porteiro vai’ ou aquela coisa ‘aeroporto ou rodoviária?’. Na verdade, esse empoderamento traz uma espécie de ameaça à exclusividade de acesso a determinados espaços. As pessoas não querem perder seu status exclusivo. Isso precisa ser encarado por aqueles que sempre negaram o preconceito e defenderam o mito da igualdade racial, porque é uma forma de tirá-los da zona de conforto. É muito cômodo manter uma empregada, muitas vezes na informalidade, com o mito do afeto.
Pedagogicamente falando, como você acha que esse preconceito deveria ser combatido? É interessante pensar em punições judiciais?
Uma coisa que precisa ser discutida é o limite da liberdade de expressão. No nível educacional, mesmo, o que é essa liberdade e o que é desrespeito aos direitos alheios, especialmente quando você comete atos criminosos de injúria racial, por exemplo. Outra questão é sobre o que é esse politicamente correto? Esses grupos quase sempre vão falar mal do politicamente correto, chamar de “mimimi” e fazer uma espécie de chacota, como se você não pudesse mais falar o que você realmente pensa. Só que o politicamente correto não pode ser confundido com um cerceamento do que você pode falar, ele deve ser visto como uma simples atenção ao que não pode mais ser perpetuado. Na esfera educacional, isso ainda é muito pouco discutido. As escolas colocam isso em pauta perto do dia 20 de novembro, que é o dia da consciência racial.
Eu já vi relatos de professores negros da educação básica de que há uma ideia de que esse tema tem que ser colocado em pauta pelos professores negros – só que não, isso tem que ser pensado como uma causa de todos. E tem uma esfera que precisa ser regulamentada sim, que é a questão da punição legal. A gente está falando de prender? Não necessariamente. Há várias outras medidas socioeducativas possíveis, mas a impunidade gera também esse conforto para eu explicitar meu preconceito. E, hoje, há uma impunidade muito grande.
Mel Bleil Gallo
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