(Folha de S. Paulo, 27/04/2015) Nos editais de seleção de professores na Universidade de Oxford, no Reino Unido, um dos argumentos para atrair bons candidatos são as creches mantidas pela instituição.
O mesmo ocorre nas melhores universidades de diversos países, que acreditam ser seu dever oferecer esse tipo de serviço, a partir da premissa de que a excelência do ensino e da pesquisa é também resultado de uma política social robusta.
Já a USP tem sido notícia na imprensa pelo motivo oposto, por cancelar todas as 141 novas matrículas deste ano em suas creches. A razão alegada foi a falta de pessoal, devido à adesão de alguns funcionários ao programa de demissão voluntária. Essa notícia poderia ser apenas mais uma dentre as várias sobre a crise financeira da USP. Mas não é.
As diretoras das cinco creches da USP afirmaram que, apesar das demissões, seria possível receber novas crianças. Ainda assim, a USP manteve o cancelamento. Diante disso, a questão tem de ser vista a partir de outra perspectiva.
O que está por trás da decisão não parece ser uma questão conjuntural, limitada ao ano de 2015, mas algo mais grave. Bastam dois ou três anos sem novas matrículas para que creches fiquem vazias e possam ser fechadas definitivamente.
O reitor, Marco Antonio Zago, vem afirmando que a USP tem de se preocupar com suas atividades-fim e se desonerar de atividades-meio. Assim, tudo o que aparentemente não se relaciona a ensino, pesquisa e extensão (atividades-fim da USP) estaria sujeito a cortes.
Segundo essa visão, oferecer creches (ou alimentação, moradia, esportes e cultura) não seria tarefa da universidade, mas um ranço assistencialista a ser eliminado.
Essa posição, além de não ser prática das melhores universidades do mundo, tem um lado perverso: ela atinge de forma mais intensa os economicamente menos privilegiados e, no caso das creches, as mulheres (que, no Brasil, ainda assumem quase sempre sozinhas a tarefa de cuidar dos filhos).
Diante do atual deficit de centenas de milhares de vagas em creches em São Paulo, a mensagem que a USP transmite para a sociedade, que a sustenta com tributos que oneram muito mais os pobres do que os ricos, é nefasta: a USP é um lugar para quem tem dinheiro, de preferência homens (sobretudo aqueles que pensam que cuidar de filhos é “coisa de mulher”).
Não é de se estranhar que os responsáveis pela decisão sejam todos homens, enquanto as diretoras das creches, mulheres, insistem ser possível receber novas crianças, que seriam acolhidas em creches que são referência nacional e que, apenas nos últimos cinco anos, foram objeto de estudo de mais de cem trabalhos acadêmicos (sobretudo de pesquisadores da própria USP).
Mais de 6.000 visitas monitoradas foram feitas às creches por pessoas e instituições interessadas em conhecer seu excepcional trabalho. A reitoria da USP, contudo, parece não dar o devido valor a esses dados. Talvez porque eles não sejam mensuráveis em dinheiro.
Não é possível analisar, neste momento, quantas pesquisas, especialmente aquelas conduzidas por mulheres, serão prejudicadas, ou talvez inviabilizadas, com o fechamento das creches.
Supor que fechá-las não atinge as atividades-fim da USP é, em uma perspectiva bondosa, muita ingenuidade. Em uma perspectiva realista, parece possível afirmar que se trata de uma atitude machista e socialmente preconceituosa.
Quero crer que o reitor não tenha percebido a extensão das consequências que a divisão simplista (e equivocada) entre atividades-fim e atividades-meio pode ter, sobretudo nos socialmente menos privilegiados e nas mulheres.
Quero crer que ele tenha sido apenas mal assessorado. No entanto, caso decida fechar creches e lentamente asfixiar as políticas sociais da universidade, a única conclusão a que se poderá chegar é que sua gestão será a mais machista e elitista da história recente da USP.
Virgílio Afonso da Silva, 41, é professor titular da Faculdade de Direito da USP
Acesse o PDF: USP, creches e machismo, por Virgílio Afonso da Silva (Folha de S. Paulo, 27/04/2015)