(CartaCapital, 28/04/2015) Casais homoafetivos estariam com receio de que a família adotiva perca proteção do Estado; para especialistas, projeto de lei 6583/13 pode tirar de certas crianças a única chance de ter uma família
A família de Marcos Gladstone (foto) é formada por quatro homens e um bulldog francês. Agora o casal gay, os dois filhos adotivos e o cachorro esperam a chegada de mais uma integrante: uma menina.
A decisão de adotar mais uma criança, entretanto, está ameaçada pelo projeto de lei 6583/13, mais conhecido como Estatuto da Família, que tramita na Câmara dos Deputados.
Polêmico, o projeto define como família apenas casais formados por um homem e uma mulher, ou um dos pais e seus descendentes. Na prática, impede casais homossexuais de se casarem e adotarem crianças – ambos direitos já reconhecidos pela Justiça, mas não previstos em lei.
O projeto também afetaria a famílias compostas por casais heterossexuais com filhos adotivos, ou por tios e sobrinhos, ou mesmo irmãos – em nenhum desses casos há relação de descendência.
“Estamos muito preocupados e, por isso, estamos até correndo com o processo de adoção”, diz Marcos, de 39 anos. Caso o projeto seja aprovado, a lei não poderá ser aplicada retroativamente a famílias já constituídas, mas poderá impedir a adoção da futura filha pelo casal.
“Ela não teria os mesmos direitos que os meninos. Teria que ser adotada por apenas um de nós, como se fôssemos solteiros. Caso eu a adotasse, ela não poderia entrar como dependente no plano de saúde da empresa onde o meu marido trabalha, como ocorreu com os meninos. Não teria direito à herança dele, nada. Seria o caos”, explica Marcos, que é advogado e pastor.
Para Maria Berenice Dias, presidente da comissão de diversidade sexual da Ordem dos Advogados Brasil, o projeto de lei é um retrocesso. “Tem perfil homofóbico, é uma maneira de tirar os direitos que as uniões homoafetivas vêm conquistando no âmbito do poder judiciário”, afirma ela, que também é vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam).
Segundo a advogada, o projeto de lei é inconstitucional, por fazer distinção entre filhos adotivos e biológicos, além de ir contra a decisão de 2011 do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar.
De acordo com a advogada Silvana do Monte Moreira, que é diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), o projeto de lei tem afastado homossexuais interessados em adotar crianças.
“O número de atendimentos realizados para casais homoafetivos diminuiu. As pessoas estão muito tensas com isso. Já é tão difícil adotar, a partir do momento em que você pode perder a proteção do Estado para a sua família adotiva, muita gente desiste”, afirma.
A advogada afirma que a procura por parte de casais homoafetivos vinha aumentando na última década. Segundo a sua experiência, os homossexuais impõem menos restrições na hora de adotar que os heterossexuais, o que permite com que o processo seja mais rápido.
“Eles adotam justamente os perfis que a maioria não quer, como crianças mais velhas e grupos de irmãos. Na minha opinião, eles passaram tanto tempo sendo marginalizados que buscam exatamente adotar as crianças que são colocadas para debaixo do tapete”, diz Moreira.
Para ela, o projeto de lei está tirando de certas crianças a sua única chance de ter uma família. “Nós temos um monte de adolescentes inadotáveis, que estão em acolhimento institucional no Brasil, e as pessoas que poderiam adotá-los estão com medo. Esse projeto de lei é um desserviço”, afirma.
Os deputados que apoiam o Estatuto da Família, muitos deles religiosos, acreditam que o projeto de lei beneficia as crianças ao impedir a adoção por homossexuais.
“Não podemos subordinar as crianças a obterem adoção que cristalize a impossibilidade de suprirem o trauma da perda e falta de convívio com seu pai e sua mãe”, afirma o relator do projeto, o deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF), em texto anexado à proposta.
O projeto de lei determina que pessoas solteiras, entretanto, podem adotar, porque não estaria excluída a possibilidade de um casamento e “teria paralelo com a família monoparental”.
Para o psicólogo Luis Saraiva, presidente da comissão de ética do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, o projeto de lei erra ao enfatizar a procriação como principal função social da família.
“A gente sabe que não é necessariamente com esse fim que as pessoas formam famílias. São relações baseadas em laços de consanguinidade, afeto e solidariedade”, diz.
Por não colocarem restrições ao perfil da criança, a adoção realizada por Marcos e seu marido, Fábio Canuto, de 35 anos, foi extremamente rápida para os padrões brasileiros: demorou apenas seis meses.
“Nós éramos o único casal habilitado no estado do Rio de Janeiro, na época, a receber uma criança de seis anos, por exemplo. Também não determinamos cor ou gênero e concordamos com doenças tratáveis”, conta Marcos.
No início, o casal queria apenas uma criança, mas acabaram aceitando adotar duas. Felipe e Davidson chegaram à família em 2011, com sete e oito anos de idade, respectivamente.
Segundo Marcos, nos casos em que o adotado é mais velho, o tema da orientação sexual dos pais é tratado antes, durante um período de aproximação, quando a criança passa fins de semana com a família.
“Com o Felipe, nós explicamos que ele não teria uma mãe, mas dois pais. Perguntamos se ele tinha preconceito e preferia esperar por outra família, mas ele escolheu ser adotado. Ele disse: ‘eu amo vocês do jeito que vocês são'”, conta Marcos, orgulhoso.
A história de Airton Gonçalves de Oliveira, de 53 anos, e Marco Antonio Scopel Buffon, de 52 anos, é parecida. O processo de adoção dos dois filhos demorou apenas 10 meses.
“As pessoas querem filhos com cor de pele, cabelo e olho igual. Aí ficam cinco anos esperando, claro, até fabricarem exatamente aquilo que eles querem. A gente já não é um casal padrão, por que a gente vai querer uma criança padrão? Nós somos uma família dégradé, cada um de uma cor”, conta o casal, entre risos.
Marco e Airton adotaram os irmãos – por parte de mãe – Guilherme e Henrique, há cinco anos, em Porto Alegre. Na época, o mais velho tinha nove anos e o mais novo, quatro.
Sobre o Estatuto da Família, Marco Antonio e Airton acreditam que eles provam, na prática, que o projeto de lei está errado. “Se eles virem a gente, podem pensar: ‘Espera aí… Acho que esses guris estão bem'”, explicam, bem-humorados, “acabamos virando um exemplo na rua e na escola.”
Por Marina Estarque, de São Paulo
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