(Opera Mundi, 27/08/2015) Para Corina Rodríguez Enríquez, não basta remunerar atividades domésticas a quem as executa: é preciso ações afirmativas que permitam às mulheres ocupar as mesmas posições dos homens
Como alcançar maior igualdade entre homens e mulheres? Como acabar com injustiças inexplicáveis, como salários diferentes para uma mesma função? Para a economista feminista argentina Corina Rodríguez Enríquez, são necessários uma revolução cultural e, principalmente, mecanismos de coerção para fazer homens terem tantas tarefas dentro de casa (no chamado trabalho do cuidado) quanto mulheres. Somente dessa maneira, ela explica, será possível às mulheres terem o mesmo espaço no mercado de trabalho que os homens.
“Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles trabalhem menos”, explica a também pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnológicas e integrante do comitê executivo do Development Alternatives with Women for a New Era (DAWN).
Para Corina, não basta remunerar atividades do lar a quem as executa: é preciso buscar ações afirmativas que proporcionem às mulheres a possibilidade de ocupar o mesmo número e tipos de posições historicamente relegadas ao universo masculino. “Não é algo fácil, ainda mais porque a atual forma de organização do cuidado está tão naturalizada que as próprias mulheres não a reconhecem como problema”, observa, ao lembrar que mesmo em países onde a licença parental de dois anos pode ser dividida, a tendência é a mãe assumi-la por mais tempo. “É preciso obrigar os homens a cuidar”, protesta. “Nós, mulheres, não temos mais atributos que os homens para cuidar. Simplesmente temos capacidade de parir e amamentar”.
A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:
Opera Mundi: Do que se trata a economia feminista e a economia do cuidado
Corina Rodríguez Enríquez: A economia feminista é uma corrente de pensamento heterodoxa, bastante nova e marginal. A economia do cuidado tem a ver com as interações entre as questões de gênero e as relações econômicas e, nesse sentido, tem contribuído para o debate de políticas publicas, o que é bem útil no contexto da América Latina. Em um certo sentido, o que a economia feminista faz, acunhando o conceito da economia do cuidado, é dar visibilidade ao papel sistêmico que o cuidado tem na dinâmica econômica. Os ortodoxos falam da produção e do mercado de trabalho dando por certo a existência da oferta de mão de obra, sem se perguntar como essa força laboral está disponível. E uma das coisas à qual busca dar visibilidade a economia do cuidado é que para essa força de trabalho estar disponível todos os dias para o capital contratá-la, é preciso um imenso trabalho, não majoritariamente remunerado, que realizam as mulheres. O segundo ponto para o qual atenta é como essa atual organização da força de trabalho explica a situação econômica das mulheres, ou seja: como essa forma de organizar o cotidiano da vida, que se sustenta primeiro nos lares e no trabalho não remunerado das mulheres, faz com que elas tenham menor e pior participação no mercado de trabalho, onde conseguem trabalhar menos que os homens, muitas vezes em tarefas informais, sem registro ou proteção social, e com salários menores.
OM: A desigualdade de gênero nos lares é um reflexo ou um motor da desigualdade dentro das empresas e do mercado em geral?
CRE: Creio que o que se passa dentro dos lares é o que se passa no mercado de trabalho e vice-versa, porque as mulheres têm menores salários e menos opções laborais, porque somos mais discriminadas pelo fato de sermos mulher. As relações de gênero são dinâmicas e se transformam com o tempo, então o que diz respeito a nossas vidas é diferente do que foi para nossas mães ou nossas avós. Apesar das transformações nisso, as mudanças com o trabalho de cuidado vem mudando muito lentamente. Os homens parecem dispostos a assumir tarefas na economia do cuidado, como levar filhos ao colégio ou ficar com eles, mas estão menos dispostos a limpar a casa, passar ou cuidar de idosos ou doentes. As mulheres, então, acumulam a jornada habitual de cuidado à jornada laboral, e não podem diminuir as tarefas de cuidado por não terem a quem recorrer. Estão debilitadas pelo marco machista e pela precariedade de serviços públicos de cuidado.
OM: Na América Latina isso ainda é pior, não?
CRE: Na América Latina isso é muito mais pronunciado por vários motivos. Em primeiro lugar porque o sexismo e o machismo são traços culturais ainda muito fortes. Além disso, os Estados não assumiram o tema do cuidado como prioritário em suas agendas de política pública. Apenas dois ou três países da região o fizeram, como o Uruguai, cujos partidos nas últimas eleições trouxeram o tema para o debate.
OM: Se não incluirmos a questão de gênero para tratar de desigualdade, como conseguiremos superá-la? Como iniciar esse debate fora da academia?
CRE: O que precisamos nos países da região é trazer o tema para a agenda pública, ou seja: produzir argumentos sólidos a favor de políticas públicas nesse campo. Em segundo lugar, é preciso que o movimento de mulheres assuma o tema. Os movimentos de mulheres, na maior parte dos países da região, concentraram-se em temas como violência e direitos sexuais e reprodutivos, mas não abordaram esse tema do cuidado em suas agendas. Então continua sendo um tópico histórico dos debates feministas, que querem transformar as relações de gênero e questionar o status quo. Isso é imprescindível para gerar uma demanda social por políticas de cuidado. Não é algo fácil, ainda mais porque a atual forma de organização do cuidado está tão naturalizada que as próprias mulheres não a reconhecem como problema. Será preciso uma batalha cultural, que requer estratégias perseverantes e criativas, assim como argumentos. O Instituto de Estatísticas de México, por exemplo, estimou que o valor econômico do cuidado em seu país gira em torno de 20% do PIB, que é mais do que o México recebe de exportações de petróleo ou mais do que recebe de remessas de imigrantes no exterior. Na Argentina, por exemplo, 20% do PIB é mais do que gastamos com o sistema previdenciário.
OM: A teoria econômica que vigora e guia as politicas públicas de hoje é androcêntrica, em sua opinião?
CRE: A teoria econômica ortodoxa é androcêntrica e continua sendo a base da formulação de políticas públicas. O que a economia feminista denuncia é que as relações econômicas estão atravessadas pelas relações de gênero, têm implicâncias diferentes para homens e mulheres e perpetuam desigualdades de gênero. Há quem defenda que se esse trabalho do cuidado cumpre uma determinada função na economia, não é remunerado e ainda ajuda a perpetuar a desigualdade, então deveria ser pago. Outra posição, como a minha, acredita que a demanda da remuneração pode servir como reconhecimento, mas não transformará a situação das mulheres. E, se aspiramos à uma sociedade mais igualitária, o que demandamos é que se retribua trabalho e tempo – tanto cuidado não remunerado quanto aquele remunerado de mercado. Queremos que os homens cuidem mais, portanto, necessitamos que eles atuem menos no mercado de trabalho. A chave é a redistribuição do trabalho e de tempo de trabalho. Para isso a recompensação monetária não é suficiente, pode ser até contraproducente.
OM: Como, então, fazer os homens trabalharem menos tempo no mercado e mais em atividades de cuidado?
CRE: Há diferentes estratégias e é importante pensar elas em seus contextos. Os países europeus conseguiram uma distribuição com uma das estratégias de implementação de licenças paternais e também parentais. Essas licenças são conseguidas com os homens trabalhando menos tempo e dedicando mais tempo ao cuidado. O Uruguai, por exemplo, aprovou no ano passado uma lei de ampliação da licença paternal para um mês e a implementação da licença parental. O que a experiência europeia ensinou é que quando as licenças estão disponíveis para mães e pais, as mães acabam cumprindo-as. Então, é preciso implementar mecanismos que obriguem os pais a fazê-lo também. Por exemplo, em países com licença parental de dois anos, pai e mãe podem dividi-la, mas pelo menos seis meses devem ser do pai, senão a licença se reduz a um ano e meio. Estou convencida de que quando enfrentamos tradições culturais arraigadas é necessário um pouco de coerção para transformá-las. É preciso obrigar os homens a cuidar. É preciso encontrar mecanismos que os obriguem a assumir essas responsabilidades.
OM: Algumas funções são vistas como mais propícias para homens e outras para mulheres? Como descontruir isso?
CRE: Temos que descontruir a divisão sexual de trabalho tal como existe. É preciso uma mudança cultural, mas também políticas públicas com ações afirmativas. O Paraguai, por exemplo, implantou um programa para promover a incorporação das mulheres como motoristas de ônibus no sistema de transporte público. Incentivaram, através de uma política afirmativa, que as empresas de transporte contratassem as mulheres.
OM: A que se deve a naturalização da ideia de que a mulher tem maior capacidade de cuidar do que os homens?
CRE: Temos uma capacidade biológica diferente da dos homens, de parir e amamentar, que é inegável. A partir dessa diferença biológica foi construída uma diferença social em relação aos papéis de cuidado, com a ideia de que se parimos temos mais habilidade para trocar fraldas e preparar a comida. Mas isso se estendeu de tal forma que passou a ser entendido que se temos capacidade de parir temos maior capacidade para limpar o banheiro ou para fazer as compras! Essa é, então, a construção social das relações de gênero: a partir de uma diferença biológica inegável em relação à vida, construir essa diferença social, que não tem nenhum fundamento científico. Nós, mulheres, não temos mais atributos que os homens para cuidar. Simplesmente temos capacidade de parir e amamentar.
Marsílea Gombata
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