Núcleos e grupos de defesa dos direitos das mulheres emitem nota de repúdio ao PL 5.069/2013

28 de setembro, 2015

(Agência Patrícia Galvão, 28/09/2015) O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher  (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) divulgaram em 23/09 nota conjunta de repúdio ao Projeto de Lei nº 5.069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), a qual aderiram outras organizações de defesa dos direitos das mulheres.

Leia também: Nota de Repúdio ao PL 5069/63 – que trata com desprezo a vida das mulheres (Católicas pelo Direito de Decidir, 28/09/2015)

Acesse aqui em pdf a Nota de Repúdio ao PL 5.069/2013, que segue na íntegra:

O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, o CLADEM – Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim vêm apresentar nota de repúdio ao PL 5069/2013, que cria tipo penal de induzimento, instigação ou auxílio ao aborto, incluindo, nessa prática, profissionais de saúde que garantem à mulher sua saúde sexual e reprodutiva, além de obrigar que a mulher vítima de violência sexual faça boletim de ocorrência e se submeta a exame de corpo de delito para poder ser atendida na rede de saúde.

No Brasil, nos termos do artigo 196, da Constituição Federal, a saúde é um direito universal, sendo, portanto inconstitucional condicionar o atendimento de qualquer pessoa num serviço de saúde, conforme pretende a presente proposta.

Criar condições como lavratura de boletim de ocorrência e realização de exame de corpo de delito para que a mulher, já vítima de uma violência de gênero, possa comprovar ter sido vítima de violência sexual, é também reduzir sua liberdade de buscar o sistema de segurança pública, garantida pelo Código Penal.

Se a própria disposição do próprio corpo é, ainda, um tabu no Brasil, e se, mais ainda, a prática de crimes que envolvam violência sexual contra a mulher ainda não é uma política pública guiada pela racionalidade, imaginar-se que a documentação dos atos que ela mesma tenha sofrido passa a depender do constrangimento de submissão a perícias oficiais, constitui-se, além de regresso ao tempo de prova tarifada, em odiosa dupla vitimização.

Frise-se, no ponto, que o entendimento que a violência sexual é crime contra os costumes já é ultrapassado, sendo que hoje, finalmente, há reconhecimento de que a violência sexual é um crime contra a dignidade sexual da vítima, cabendo apenas a ela buscar, se for o seu desejo, reparação criminal ao seu agressor.

É preciso, infelizmente ainda nestes tempos, frisar, assim, que a esfera de livre autonomia da mulher deve necessariamente abranger todo o procedimento, desde a decisão quanto a se submeter a novas e constrangedoras exposições quanto aos danos físicos e psicológicos pelos quais passou e, também, até a comunicação aos órgãos de Segurança Pública quanto ao acontecido.

Trata-se, por questões humanitárias, de esfera de livre determinação dela, motivo pelo qual se repudia a pretensão Estatal de normatizar os requisitos de comunicação dos atos sofridos, tratando do grave problema como se fosse exclusivamente de Segurança Pública, quando não é.

Sabe-se que a violência sexual traz muitos traumas e respeitar o desejo da mulher em não ver seu corpo novamente exposto a um desconhecido é garantir sua autonomia e, dessa forma, sua própria dignidade.

É sabido que no Brasil o aborto é crime, sendo, no entanto, alguns casos garantidos por lei ou decisão do STF, como quando a gravidez é resultante de estupro, há risco de vida da gestante e nos casos de anencefalia – inviabilidade da vida extrauterina.

Nos casos de gravidez resultante de estupro, não sendo mais crime o procedimento de aborto, o profissional de saúde deve atender à mulher nos termos da norma técnica expedida pelo Ministério da Saúde, órgão responsável por regulamentar a atuação no Sistema único de Saúde – SUS.

Trata-se de questão de saúde pública, pois, e não de problema prioritariamente da Justiça Criminal.

Por fim, a criação indiscriminada de tipos penais sem qualquer comprovação de que será a norma efetiva, ou seja, essencial para evitar a conduta, além de inconstitucional, visa apenas trazer medo e insegurança às mulheres, principalmente as mais pobres e em condições de vulnerabilidade, que já possuem pouco conhecimento sobre seus direitos sexuais e reprodutivos.

Exemplificativamente, é de chamar a atenção a falta de razoabilidade em se atentar ao conteúdo do art. 126-A, imaginado pelo aludido projeto de lei. De fato, tal dispositivo pretende punir aquele ou aquela que “induzir ou instigar a gestante a praticar aborto ou ainda lhe prestar auxílio para que o faça”.

Mais uma vez, aqui, deve-se lembrar que a questão é prioritariamente de saúde pública, e de não de direito penal. E, especificamente sobre o citado dispositivo projetado, o dispositivo gerará uma dupla punição penal, totalmente desarrazoada: a do médico ou pessoa que terá realizado o aborto, já responsabilizado nos termos do art. 126, caput, e, agora, também a de terceira pessoa que tenha participado do procedimento de tomada de decisão da gestante.

Mais ainda: no mesmo dispositivo (art. 126-A), seus dois parágrafos são despidos de qualquer justificativa plausível. O primeiro, porque – exatamente na contramão de uma política pública que volte seus olhos à saúde e ao bem estar da mulher, na esfera de autodeterminação de seu corpo e, até mesmo muitas vezes, redução de danos por conta de violência sofrida – pretende a punição de “agente de serviço público de saúde ou por quem exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro”.

Ora: a responsabilização dos agentes de saúde significa exatamente o contrário do que se deveria imaginar ser a política pública de saúde! A legislação pretendida parece, inclusive, projetar um juízo de valor, apriorístico, contra a justificativa de qualquer intervenção médica a pedido da gestante. É clamorosa, assim, a valoração inconstitucional que é feita no aludido projeto de lei, seja de como se enxerga o profissional de saúde, seja – uma vez mais – a partir da premissa que desconsidera a raiz de saúde pública do problema e privilegia o lado penal.

E, enfim, o segundo parágrafo é ainda mais desarrazoado porque, ao contrário da norma vigente, que admite a causa de aumento de pena se a mulher “não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência” (art. 126, parágrafo único, CP), passou-se a imaginar a causa de aumento, na malfadada hipótese de induzimento ou incitação, se a mulher “é menor de dezoito anos”.

É de pasmar. Num país em que todos sabem o quão demorado e custoso é às mulheres uma legítima igualização em termos de exercício de direitos (que o digam o direito ao voto, só reconhecido na Constituição de 1934, e a plena aptidão de capacidade civil da mulher separada que veio só com a Lei 6.515/77), em plena vigência já de mais de duas décadas da Constituição Federal, pretende-se criar uma norma que, a pretexto de aumentar a pena ao agressor, rebaixa a condição da mulher (antes, o consentimento válido era a partir dos 14 anos; e agora, depende de ter completado 18 anos), conforme sua situação etária.

Numa época de aceleração de formas de consentimento, de crescentes discussões – inclusive para as quais têm se dado atenção no Congresso Nacional – quanto à precocidade com que se chega aos atos de livre-arbítrio, realmente causa espécie o paternalismo penal, supondo que o consentimento que antes era válido a partir de 14 anos, agora retorna ao patamar da exigência de 18 anos. nitidamente, a norma é um retrocesso na conquista dos direitos das mulheres, particularmente no de exercício de sua autodeterminação, leia-se: no de tomar suas próprias decisões.

Depois, ainda no campo estritamente de direito penal, não há razão que justifique a revogação do art. 20 do Decreto-Lei 3688/41 pela nova figura penal imaginada no art. 134-A, do Código Penal (“anunciar processo, substancia ou objeto destinado a provocar aborto”).

Ora bem, a mesma previsão constante da Lei de Contravenções Penais, numa tacada, passará a se incorporar ao Código Penal, como se isso por si resolvesse os problemas (de saúde pública, e não de direito penal!) atinentes ao anúncio de processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto. Não é verdade, até porque se a conduta é a mesma há mais de 60 anos, algum estudo sério que pretendesse ver alguma razão para a mudança de tratamento forçosamente deveria vir amparado em critérios empíricos, que abalizassem a pretendida mudança. E não é isso o que se vê.

Bem ao contrário, e talvez sequer se tenha pensado nisso: a própria punição prevista no art. 134-A possui pena máxima de 2 anos de detenção, o que vale dizer que a consequência jurídica para tal crime será inequivocamente a mesma da já prevista na Lei de Contravenções Penais, qual seja: uma proposta de transação penal, pois se trata – tanto a contravenção como a nova figura – de crime de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 61, da Lei 9099/95.

Resta tratar, isso sim, do apenamento mais rigoroso, outra vez, aos profissionais da saúde (no parágrafo único do art. 134-A do citado projeto de lei). Aí, outra vez, tomouse o profissional não como alguém vocacionado à saúde da mulher mas sim, em clara e inconstitucional inversão valorativa, alguém predisposto a prática de crime.

Brasília, 23 de setembro de 2015.

Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo
CLADEM – Comitê Latino-Americano para Defesa dos Direitos da Mulher
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Grupo de Estudos Sobre Aborto – GEA
Artemis
SAGE – Núcleo de Pesquisa em Saúde e Gênero da UFRS
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
Núcleo de Pesquisa e Estudo em Gênero da UFRPE
Liga Brasileira de Lésbicas

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas