(Carta Capital, 03/11/2015) A filósofa francesa realizou um estudo sério; se for pra criticar, ao menos façam comentários sérios e embasados, sem impedir ou rebaixar a reflexão
Na última semana assistimos a um grande show de horror no Brasil. Uma questão na prova do Enem que trazia uma frase da filósofa francesa Simone de Beauvoir e o tema da redação que versava sobre a persistência da violência contra a mulher, causou falsa indignação e respostas tenebrosas por parte de alguns membros da intelligentsia (muita ironia, por favor) brasileira.
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Marco Feliciano, em sua página de Facebook, desaprovou a questão. Disse se tratar de tentativa de doutrinamento e completou:
“A primeira pergunta apresentado na prova do Enen (sic) deste sábado versa sobre um assunto em que em todas as esferas legislativas de nosso país foi vencida e jogada no lixo, a teoria de gênero, algo que sutilmente tentaram nos incutir de forma sorrateira e rechaçada pelos parlamentares eleitos democraticamente pela maioria da população e que todas as pesquisas apontam como maioria de fé Cristã e conservadora”, opinou.
“Essa frase da Filósofa Simone de Beauvoir é apenas opinião pessoal da autora, e me parece que a inserção desse texto, uma escolha adrede, ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens.”
O promotor de Justiça de Sorocaba, Jorge Alberto de Oliveira Marun, também sobre Beauvoir escreveu em sua página de Facebook:
“Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”, escreveu.
A declaração fazia referência à célebre frase de Simone de Beauvoir, ”Não se nasce mulher, torna-se mulher”. O comentário ofensivo e desprovido de reflexão crítica rendeu uma nota de repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Para quem estuda a obra de Simone de Beauvoir como eu, foi uma alegria ver uma questão sobre sua obra numa prova de alcance nacional.
Beauvoir foi uma intelectual importante que, ao lançar O Segundo Sexo em 1949, colocou a mulher no centro do debate e rompeu com uma tradição filosófica que a mantinha invisível ou vista a partir do olhar do outro.
Quando lançou a obra, Beauvoir não se entendia como feminista ainda, nesse estudo em específico pensa a categoria de gênero por uma perspectiva existencialista e, como afirma Margaret Simons, uma das maiores especialistas em Beauvoir, posteriormente a obra adquire um caráter fundamentalmente político.
Estudar Simone de Beauvoir é de suma importância por conta de suas grandes contribuições filosóficas. Feliciano colocar a famosa frase de Beauvoir como “opinião dela” mostra seu total desconhecimento de como funciona um sistema filosófico. Maldita doxa, diriam os gregos.
Fora isso, houve uma tentativa de querer destruí-la como ser humano em vez de questionar cientifica e politicamente sua obra dentro das condições históricas a qual estava submetida.
Tanto Feliciano como Marum podem discordar do pensamento dela, mas que tenham competência crítico-argumentativa para fazê-lo em vez de destilarem machismo e burrice. Beauvoir realizou um estudo sério. Se for pra criticar, ao menos façam críticas sérias e embasadas. Não se pode impedir e nem rebaixar a reflexão crítica, por favor.
O que Beauvoir quis dizer com a frase “Não se nasce mulher, torna-se” não é de difícil entendimento. Explico: ao dizer que “não se nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre a construção do “gênero” e o “sexo dado” e mostra que não seria possível atribuir às mulheres certos valores e comportamentos sociais como biologicamente determinados. Simples, não é? E faz todo sentido, o ser mulher se impõe; há uma imposição social de como as mulheres devem se comportar.
Diante das várias imbecilidades proferidas, Danilo Gentili, o imbecil mor ficou com inveja e não quis ficar de fora. Em seu programa The Noite, um de seus convidados fez piadas violentas escancarando o que há de pior no humor brasileiro.
Já escrevi sobre como o humor não está descolado dos valores da cultura, e o convidado descerebrado de Imbecili, Leo Lins, só comprovou isso ao dizer coisas do tipo: “Eu já li que a cada 12 segundos uma mulher sofre violência no Brasil, mas estou escrevendo a redação há 30 e não vi nenhuma apanhando”.
“Também é preciso ver quem fez a pesquisa… como saber se o sangue é de violência ou ciclo menstrual? Afinal, o sangue que sai de um corpo é o mesmo, não importa o buraco.”
Após esse show de desrespeito absurdo, uma fã de Imbecili criticou o fato de os “humoristas” debocharem de um tema tão sério e disse que não seria mais fã de Gentili. Ao que ele respondeu: “Mas vc jura por tudo que deixou mesmo de ser minha fã? Eu posso até depositar uma grana pra vc me enviar um contrato que nao é mais minha fa. É importante pra mim saber que nao tenho fã arrombada”.
O cúmulo da falta de respeito e de civilidade.
Gentili é o que há de pior na televisão brasileira. Debater temas como violência contra a mulher é importante para a sociedade, há inúmeras pesquisas sérias que comprovam o alto índice de mortes de mulheres por seus companheiros.
Logo debochar disso, além de mostrar que essas pessoas têm problema de caráter e revelar o que há de mais sujo e baixo, é uma forma de concordar com essa violência, de manter as coisas como estão. Gentili poderia fazer um favor à humanidade e permanecer calado até aprender a ser gente.
Apesar de toda a manifestação horrenda de Feliciano, Marun e Gentili, vejo algo positivo nisso tudo. É urgente que temas como esses sejam debatidos e ensinados, se estão incomodando é porque talvez estejamos no caminho da mudança.
Como disse Érico Veríssimo: “Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento”.
As três figuras aqui citadas querem permanecer erguendo as barreiras da ignorância, do desrespeito e machismo. Façamos moinhos de vento.
Acesse no site de origem: Simone de Beauvoir e a imbecilidade sem limites de Feliciano e Gentili, por Djamila Ribeiro (Carta Capital, 03/11/2015)