Nota pública: O IGF 2015 e os desafios para uma internet livre e aberta

16 de dezembro, 2015

(Intervozes, 16/12/2015) A 10ª edição do Fórum da Governança da Internet aconteceu este ano em João Pessoa, entre os dias 9 e 13 de novembro. Trata-se de uma reunião anual dedicada à governança da Internet, abordando desde temas mais “técnicos” e globais, como a competência de órgãos para manejo de protocolos e arquivos de sistema de nomes de domínios (DNS), a questões regulatórias de interesse local, como leis que evitam discriminação de tráfego e garantem a neutralidade da rede, medidas para ampliar acesso à banda larga para todos e proteção dos dados e privacidade dos usuários.

Diferentemente dos encontros da União Internacional das Telecomunicações, que reúnem governos e empresas, o IGF baseia-se na ampla participação de entidades, acadêmicos e ativistas. No encontro de João Pessoa, centenas de representantes de organizações da sociedade civil de todo o mundo se reuniram para debater questões que exigem definição de políticas e ação coordenada.

Esse texto apresenta um breve balanço de tais questões do ponto de vista das organizações brasileiras que assinam essa nota.

O IGF contou com dezenas de painéis, debates e eventos paralelos. A programação completa evidencia a diversidade dos temas discutidos (http://www.intgovforum.org/cms/igf-2015-schedule). Nos posicionamos aqui sobre quatro questões que tem relevância para a sociedade brasileira: neutralidade de rede; ampliação do acesso à banda larga; privacidade; e discurso de ódio e violência contra mulheres em ambientes virtuais.

1. Neutralidade de rede
As discussões sobre neutralidade – princípio de arquitetura da rede que garante a não discriminação de pacote de dados dos usuários – dominaram a 10ª edição do IGF. Acadêmicos da “Coalização Dinâmica de Neutralidade de Rede” apresentaram um relatório defendendo a não discriminação como direito fundamental, reforçando o que foi positivado no Brasil pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014, Art. 3º, IV). Entendemos que nosso país deu um passo importante em 2014 ao garantir esse princípio. Resta, porém, regulamentar as exceções à neutralidade que não representam uma discriminação ilegítima do tráfego de dados.

Tal falta de regulamentação, inexistente em diferentes países, tem reforçado as polêmicas em torno dos programas de não-tarifação conhecidos como “zero rating”. O modelo de negócios lançado pelo Facebook (Internet.org/Free Basics) e sua implantação, sobretudo em nações em desenvolvimento, foi objeto de questionamentos pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil e criticado por diversas organizações latino-americanas e africanas, assim como pelo Ministério Público Federal (na Nota Técnica nº 02/2015). Entendemos que, ao discriminar pacotes de dados, os programas baseados no “zero rating” violam o Art. 9º do Marco Civil da Internet e afrontam os princípios de diversidade, abertura e colaboração do MCI. Trata-se de um mecanismo que fomenta aplicações compartimentalizadas e reforça posições dominantes de determinadas aplicações, trazendo barreiras à inovação. Governo, sociedade civil e autoridades jurídicas precisam monitorar as práticas de empresas de telecomunicações e gigantes do setor de aplicações para evitar a discriminação ilegítima de dados. Os usuários devem ser livres para usufruir de uma Internet neutra e aberta.

2. Acesso à internet
A retórica da “inclusão digital” foi utilizada por muitos grupos econômicos, durante o IGF 2015, para defender a manutenção dos programas de “zero rating”. O argumento utilizado pelas empresas é o de que, assim, a Internet “chegará aos pobres” e, ao gerar demanda, incentivará o investimento necessário para o acesso nessas regiões.

Entendemos que esse argumento é falacioso e distorce o debate sobre inclusão digital realizado desde a primeira edição do IGF. Não queremos uma Internet dos pobres (limitada a determinados sites e baseada na coleta massiva de dados dos usuários) e uma Internet dos ricos (livre e com garantia de direitos). Queremos que a inclusão digital ocorra por meio do acesso pleno à Internet, de qualidade e em banda larga.

O desafio latino-americano ainda é grande. Segundo dados mais recentes do Banco Mundial, enquanto França e Holanda apresentam altas taxas de população conectada (90%), Argentina possui 64%, Uruguai 61%, Brasil 57%, Paraguai 43% e Bolívia 39%. É preciso reanimar as discussões sobre ampliação do acesso à banda larga, como defende a Campanha Banda Larga é Direito Seu! No Brasil, tal debate requer uma atenção especial para a reforma da Lei Geral de Telecomunicações e o desenho do marco regulatório do setor. Por aqui, a redução de investimentos em infraestrutura de telecomunicações nos últimos dois anos e o lobby das empresas para que o regime de prestação do serviço não tenha metas de universalização, reversibilidade de bens e obrigações de investimento segue forte. Não obstante os lucros exorbitantes, as empresas globais insistem em inundar a mídia com um discurso de “crise” e incapacidade de investimento sem mudança da legislação.

3. Vigilância em massa e criptografia
Um terceiro ponto importante do IGF foi o conjunto de debates contra a vigilância em massa dos usuários e de iniciativas em repúdio a práticas de coleta massiva de dados por empresas e governos. A defesa da privacidade foi reafirmada como direito humano e o novo Relator Especial para Privacidade da ONU, Joe Cannataci, reuniu-se com diversas organizações latino-americanas para mapear como tais violações tem ocorrido na região e quais as estratégias desenvolvidas pelas organizações da sociedade civil para a proteção de dados pessoais na Internet, como projetos de incentivo à criptografia. Cannataci tem defendido a necessidade de um tratado internacional sobre privacidade para lidar com a atuação das empresas multinacionais e fazer frente a medidas como a negociação da privacidade em tratados internacionais de comércio, como o recente TPP, que pode se tornar lei federal em países da América Latina e Sudeste Asiático. Reafirmamos, assim, a necessidade de submissão ao Congresso Nacional do anteprojeto de proteção de dados pessoais, elaborado pelo Executivo e amplamente discutido com a sociedade civil. A proteção de dados pessoais e a garantia da privacidade dos cidadãos/ãs brasileiros/as não podem ser obstruídas por um jogo político entre governo e oposição. Sem a afirmação desses direitos e a criação de uma autoridade para proteção de dados pessoais no Brasil, o princípio de proteção da privacidade, garantido pelo Marco Civil da Internet, fica vazio de significado e suscetível a permanentes ameaças – como as resultantes de inúmeros projetos que já buscam, no Parlamento, alterar a lei recém-aprovada.

4. Discurso de ódio e violência contra mulheres em ambientes virtuais
Nunca o IGF havia se debruçado tanto sobre os crescentes ataques aos direitos humanos cometidos nas redes virtuais e a necessidade de lidar com tal realidade sem violar a liberdade de expressão na Internet. Os debates também problematizaram o fato de inúmeros governos terceirizarem aos grandes intermediários da rede, abrindo mão do papel do poder público, a tarefa de analisar e remover conteúdos suspeitos de violação de direitos, sem decisão judicial. No Brasil, o cenário se repete. Plataformas e redes sociais continuam adotando modelos descalibrados de regulação da expressão: ao mesmo tempo em que permitem discursos de ódio e agressões, limitam protestos de mulheres contra o machismo e a misoginia. É preciso inverter essa lógica e desenvolver políticas de prevenção à violência contra a mulher e da promoção da diversidade em ambientes virtuais, como preconiza o Marco Civil da Internet.

Foi, como visto, um IGF rico em discussões e muito claro ao apontar os desafios para o futuro da Internet. É imperativo, portanto, que o acúmulo dos debates e articulações ganhe consequência e não seja ignorado em função do delicado cenário político vivido pelo país. Assim, é necessário que o governo aja com celeridade para garantir a regulamentação do Marco Civil da Internet; desenvolva ações de defesa da neutralidade de rede; implemente medidas efetivas para a universalização do acesso à banda larga; promova a discussão e aprovação de uma lei de proteção de dados pessoais; e combata o discurso de ódio e a violência contra as mulheres na rede. Mais do que uma demanda das organizações brasileiras que participaram ativamente do IGF, estes são requisitos urgentes para o avanço da democracia em nosso país.

Brasil, 14 de dezembro de 2015.

Assinam

Artigo 19
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Coletivo Digital
IBIDEM
IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor

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