Marido que estupra a mulher é punido criminalmente em apenas 52 países

18 de março, 2016

(UOL, 18/03/2016) Dos 193 países integrantes da ONU, apenas 52 consideram crime o estupro marital –quando a mulher é violentada pelo marido. No Brasil, a agressão está incluída na Lei Maria da Penha, mas na maior parte do mundo a mulher não conta com uma legislação específica que considere o marido um agressor.

Estimativas da ONU avaliam que 2,6 bilhões de mulheres e meninas vivem em países onde o estupro dentro do casamento não é explicitamente criminalizado, e estima-se que uma em cada três mulheres já tenha sofrido algum tipo de violência física e/ou sexual, na maior parte das vezes cometida pelo parceiro.

Historicamente, a violência sexual não era criminalizada quando praticada dentro de uma relação íntima. A mulher era vista como uma espécie de propriedade, e a relação sexual vista como uma obrigação contratual ligada ao casamento.

O estupro era um crime contra a honra (do homem, da família), e não uma violação do corpo feminino. A ideia de que o marido não pode ser responsabilizado por estuprar sua mulher remonta ao século 17, quando o jurista britânico Matthew Hale afirmou que o casamento por si era uma forma de consentimento –ideia mantida em muitas culturas e países até hoje.

O estupro marital foi estabelecido pela ONU como uma violação de direitos humanos em 1993. A recomendação da organização é que o casamento ou nenhum outro tipo de relacionamento constituam a defesa em um caso de ataque sexual segundo a legislação, mas esta medida ganha espaço no mundo a passos lentos.

O maior número de países com legislações avançadas na questão do estupro marital está na América Latina. Países como Brasil –com a Lei Maria da Penha–, Argentina, Bolívia e Equador revisaram seus códigos penais para considerar a violência sexual como uma violação. Alguns países africanos também criminalizam a prática, como Lesoto, Namíbia, a África do Sul e a Suazilândia.

Países como Índia, China, Afeganistão, Paquistão e Arábia Saudita não consideram o estupro do marido contra a mulher um crime. Na Índia, por exemplo, o código penal define que o sexo forçado é crime apenas se a mulher casada tem menos de 15 anos. O Sudão do Sul, país criado em 2011, define explicitamente que, mesmo forçada, a relação sexual entre marido e mulher não é considerada estupro.

 

Questão religiosa

No Paquistão, onde conselheiros religiosos chamaram recentemente projetos de lei de proteção a mulher de “anti-islâmicos”, o estupro dentro do casamento não é crime. “Alguns clérigos islâmicos argumentam que a mulher deve sexo ao marido pela virtude do casamento, então a questão do consentimento não chega nem a ser levantada”, diz a paquistanesa Reema Omer, consultora jurídica para o sul da Ásia da ICJ (Comissão Internacional de Juristas). Segundo ela, argumentos semelhantes são também usados por clérigos hindus na Índia.

“Discursos religiosos são muitas vezes conduzidos por homens, permitindo que interpretações contra o direito da mulher prevaleçam. O mesmo vale para o estupro marital”, diz Reema.

Raquel Bergen, diretora do estudo de gêneros da Universidade Saint Joseph, nos EUA, acredita que o fator religioso pode ser usado como um facilitador, como é o caso de países com legislações baseadas na sharia –a lei islâmica– e no hinduísmo. “Livros sagrados podem ser usados como uma justificativa, já que podem ser interpretados de muitas formas diferentes, até mesmo como um meio de reforçar a obrigação do sexo”, diz a pesquisadora americana.

A ativista americana Jaclyn Friedman, autora do livro “Yes Means Yes” (Sim é Sim, em tradução livre e ainda não lançado no Brasil), lembra que o conceito de que o estupro marital não representa um crime tem um fundo cultural, e que a ideia de que a masculinidade depende do poder sobre uma mulher é comum em várias culturas.

“O florescimento de qualquer tipo de fundamentalismo religioso, até mesmo cristão, intensifica a dominação do homem sobre a mulher. Até hoje existem homens que acreditam que possuem o direito de controlar a mulher em qualquer lugar do mundo”, afirma a escritora.

“O estigma do divórcio, assim como a dependência do marido, faz com que as mulheres não denunciem o estupro marital”, conclui Reema. Para Jaclyn, mesmo em países onde o estupro marital é crime, ainda é preciso mudar a forma como as denúncias são feitas e garantir a segurança das vítimas.

“Não vou dizer para uma mulher prestar queixa na delegacia se não irão acreditar nela ou irão constrangê-la. É preciso uma mudança cultural também, não só na conduta da polícia e de autoridades, mas de parentes, amigos e até de conselheiros religiosos. Assim as vítimas se sentirão seguras para denunciar seus agressores e saberão que terão apoio”.

Como é no Brasil?

O estupro era considerado um crime, mas não contra a mulher, e sim contra a honra e a honestidade das famílias. Só em 2009 o Código Penal passou a começou a mencionar o estupro como um crime contra a dignidade sexual e a liberdade sexual da mulher. Hoje, o estupro marital está entre as agressões punidas pela Lei Maria da Penha.

Segundo a promotora de Justiça e coordenadora estadual do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo Valéria Diez Scarance Fernandes, a conjunção carnal forçada ou qualquer outro ato libidinoso mediante agressão física ou ameaça grave configura crime de estupro, inclusive se é praticado pelo marido, com pena prevista de 6 a 10 anos de prisão.

Entretanto, a legislação brasileira contempla dentro do estupro marital o chamado estupro de vulnerável –quando a vítima tem menos de 14 anos, se apresenta doença mental ou quando a vítima não consegue oferecer resistência, que é o caso de uma mulher fragilizada.

“Sabemos que a violência deixa a mulher vulnerável aos poucos. Muitas vezes ela não consegue dizer não e não reage, não se opõe ao parceiro”, explica Valéria. Existem ainda os casos em que a mulher estava dormindo, dopada, embriagada e fragilizada emocionalmente pela sequência de abusos e agressões. Todos são considerados como estupro de vulnerável.

“Muitas vezes o marido se julga dono e possuidor do corpo da mulher, acha que é um território sob o qual ele exerce o poder. Por isso muitos homens não aceitam ouvir ‘não’. Tradicionalmente, o corpo da mulher sempre foi visto como território do homem”, diz a promotora.

Valéria explica ainda que, no Brasil, a palavra da vítima tem muita força, já que no caso do estupro marital é um crime praticado dentro de casa e longe do olhar de testemunhas. Ainda que não exista um vestígio diretamente relacionado com o estupro, é possível constatar as suas sequelas. “A perícia pode ou não atestar uma relação sexual recente, mas não é imprescindível. O ideal é que se faça a perícia psicológica, pois a agressão sexual deixa lesões psíquicas, traumas e causa doenças como a depressão e o estresse pós-traumático”.

As denúncias de estupro marital feitas por mulheres ainda são raras, já que muitas nem consideram ter o direito de dizer “não” e não sabem que são estupradas. Elas devem procurar uma unidade da Delegacia da Mulher ou o próprio Ministério Público. As denúncias podem ser feitas pelo telefone 180 de forma anônima.

Talita Marchao

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