(Folha de S.Paulo, 28/04/2016) Uma vacina feita a partir do sangue paterno e prescrita por médicos em casos de abortos recorrentes por fatores imunológicos foi vetada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por falta de evidência da eficácia e da segurança.
O tratamento é ofertado há mais de 20 anos em clínicas de ginecologia de nove Estados e custa cerca de R$ 3 mil.
Segundo a Anvisa, a imunização só pode ser usada em projetos de pesquisa aprovados por comitês de ética. Utilizá-la como tratamento clínico, como ocorria, agora constitui “infração sanitária”, que pode render multas e até fechamento da clínica.
O diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, diz que a agência recebeu questionamentos de secretárias da saúde sobre o tratamento.
Ao ser consultado, o CFM (Conselho Federal de Medicina) não recomendou o uso da vacina por falta de embasamento científico. “Como não é considerada terapêutica, a única maneira de usá-la é em pesquisa, obedecendo os trâmites normativos.”
Barbosa observa que o tratamento envolve riscos sanitários. “Você expõe a pessoa ao mesmo risco de uma transfusão sanguínea [transmissão de doença infecciosa].”
O caso criou um embate no meio médico. De um lado, profissionais que adotam a vacina amparam-se em várias pesquisas favoráveis a ela.
O ginecologista Ricardo Barini, professor da Unicamp e um dos pioneiros no uso da técnica no país, aponta que há trabalhos extensos demonstrando sua eficácia e ausência de riscos, desde que sejam tomados os cuidados necessários, como exame prévio. “Nossa observação durante mais de 20 anos é de ‘zero’ problema.”
Pacientes que atribuem o sucesso da gravidez às vacinas se aliaram aos médicos defensores e organizaram um abaixo-assinado contra a decisão da Anvisa.
“Em dez anos, tive seis abortos. Levava a gravidez, no máximo, até a 17ª semana. Cada perda era um sofrimento sem fim. Graças às vacinas, tive minhas maiores riquezas”, diz a enfermeira baiana Elba Ferrúcio, 40, mãe de Victoria, 4, e Lucca, 2. Ela tomou as vacinas antes e durante as gestações.
A médica Christiane Moraes, 40, tem história parecida. Sofreu três abortos antes de fazer o tratamento e engravidar de Enrico. O menino nasce no próximo mês.
“Não tenho dúvida de que a gravidez foi bem sucedida por conta das vacinas. A proibição é absurda”, diz ela.
Já o CFM e sociedades médicas defendem, também baseados em estudos, que não há evidência de que o tratamento imunológico reduza o risco de abortos recorrentes -perdas de três ou mais gestações até a 20ª semana.
O tratamento se baseia no princípio de que muitos abortos ocorrem porque o organismo da mulher interpreta a gravidez como uma doença.
Com a imunização, feita com linfócitos (glóbulos brancos) paternos, o corpo da mulher passaria a produzir anticorpos que identificassem as proteínas paternas no embrião, sem mais rejeitá-lo.
Para o médico Edson Borges, do conselho consultivo da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, não existe um mecanismo fisiopatológico envolvido nesses casos de aborto que justifique o uso da imunização.
“Nós sempre questionamos a validade e mesmo a segurança dessas vacinas. Não há evidência séria que justifique o uso”, diz Mario Cavagna Neto, presidente da SBRH (Sociedade Brasileira de Reprodução Humana).
DEFESA DA VACINA
Médicos que defendem o uso das vacinas em casos de abortos de repetição preparam um “contra-ataque”, com novos estudos, para tentar mudar o posicionamento contrário do CFM e, por consequência, o veto da Anvisa.
No mês passado, uma revisão de 18 estudos controlados demonstrou que, quando comparado com o placebo, o tratamento imunológico apresenta taxas de sucesso que variam de 63% a 85%.
O trabalho, publicado no “Jornal da Sociedade Americana de Imunologia Reprodutiva”, envolveu 739 pacientes tratadas com a vacina paterna e 999 no grupo controle (placebo).
Para o ginecologista Manoel Sarno, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), é a melhor revisão já feita sobre o assunto. “O benefício da vacina é indiscutível. Vejo isso na minha prática clínica há 11 anos.
Precisamos agora de estudos para encontrar um melhor critério de seleção das pacientes.”
Outro dado novo da metanálise, segundo ele, foi a demonstração de que fazer a imunização antes e durante a gravidez pode ser mais eficaz do que realizá-la só na gestação.
O ginecologista Ricardo Barini afirma que há três anos está sendo elaborado um estudo considerado padrão ouro envolvendo várias universidades brasileiras que avaliará a eficácia e a segurança das vacinas. “Esse tipo de estudo leva tempo para ser preparado e aprovado”, diz.
O trabalho vai envolver 400 pacientes no total. Metade será tratada com as vacinas, a outra metade com placebo.
Na opinião de Barini, os questionamentos que apontam ineficácia e falta de segurança da terapia ocorrem por “desconhecimento real da classe médica sobre o assunto e por uma propaganda negativa que se instalou no Brasil e em outras partes do mundo sobre o tratamento”.
Cláudia Collucci
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