(Extra, 05/06/2016) Três anos após ser estuprada pelo tio enquanto dormia, Y., hoje com 19 anos, viu seu abusador ser absolvido do crime. Foi uma das 791 sentenças dadas pela Justiça do Rio no ano passado em que o réu não foi responsabilizado, em meio a um total de 1.249 decisões em processos de estupro de vulnerável (quando a vítima tem menos de 14 anos ou não pode oferecer resistência, por estar inconsciente, por exemplo) em 2015. Esses julgamentos sem condenação — seis a cada dez — incluem extinção da punibilidade ou do processo, absolvição e remissão (perdão da pena para menores).
O estupro coletivo da jovem X., de 16 anos, desacordada, filmado e divulgado nas redes sociais há duas semanas levantou a polêmica. A conduta da vítima, e não do agressor, passa a ser questionada.
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Uma em cada 5 mulheres de até 18 anos já foi vítima de violência (R7, 05/06/2016)
SP registra ao menos um estupro de mulher vulnerável por dia (O Estado de S. Paulo, 02/06/2016)
— Ouvi o advogado do meu tio dizendo que, como eu tinha engravidado do meu namorado cinco meses depois do estupro, eu “não parecia ter trauma de sexo” — lembra Y, que deixou o Brasil logo após o estupro.
Em 23,7% dos casos, os processos foram extintos por falta de provas. Como estupros, muitas vezes, não apresentam provas físicas (exames ou câmeras de vídeo, por exemplo), o gerente de advocacia da organização Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, atenta para a importância de fornecer atendimento especial à vítima vulnerável na coleta de depoimento:
— Quem sabe do crime é a vítima e quem cometeu. A gente não está preparado para dar voz a criança e adolescente, que acaba ouvindo perguntas descabidas e, muitas vezes, sai da posição de vítima para a de quem cometeu o crime.
A promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Violência Doméstica contra a Mulher, Lucia Iloizio Barro Bastos, pondera:
— Se a dúvida persistir no final, o adequado é absolver. A condenação tem que vir de uma certeza.
O Tribunal de Justiça do Rio, que fez o levantamento dos dados a pedido do EXTRA, disse não comentar decisões de juízes.
Na delegacia, mais constrangimento
Antes de esbarrarem na Justiça, muitas vítimas relatam dificuldades e constrangimentos sofridos em delegacias, especializadas ou distritais. Nem sempre são atendidas por oficiais mulheres e ficam sujeitas a humilhações ou são desencorajadas a registrar os casos.
— Fui na Delegacia da Mulher, no Centro do Rio, e o delegado me pediu para contar tudo. Depois, me fez repetir várias vezes, para ver se eu não mentia. Aí vieram perguntinhas machistas: ‘Que roupa você usava perto do seu tio?’ e, depois, ‘Você já tinha se insinuado para ele?’. Não conhecia o feminismo, mas disse que era roupa normal, às vezes short curto e top. Estava errada de usar isso na minha casa? — contou Y.
A deputada estadual Martha Rocha, presidente da Comissão de Segurança Pública e Assuntos de Polícia da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), critica posturas como essa:
— É a vitimização pela segunda vez, quando a mulher tenta fazer um registro e não consegue.
O Rio teve 4.725 casos de estupro registrados em 2014, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Mas o Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que só 35% desses crimes são levados às delegacias — com isso, quase nove mil abusos sexuais não teriam sido notificados no mesmo ano.
A Polícia Civil informou que, nos últimos anos, aumentou o número de mulheres no quadro, atualmente com 2.208 agentes femininas. A instituição esclareceu, ainda, que tem buscado “designar pelo menos uma policial para os plantões de suas delegacias” e tem priorizado em seus cursos de formação a melhora no atendimento a essas vítimas.
Leia outros depoimentos recolhidos pelo EXTRA:
Y., 19 anos, estuprada pelo tio enquanto dormia, aos 16
“No meio da madrugada, acordei com meu tio (marido da minha tia) passando a mão na minha bunda e pegando minha mão para segurar o pênis dele. Fiquei com muito nojo, mas não pude gritar, estava paralisada, só consegui me esconder. Minha mãe me apoiou desde o início, me levou para fazer o registro. Depois disso, comecei a ter pesadelos, sonhava que ele me matava. Não conseguia mais ir à escola ou sair sozinha. Minha mãe recebeu proposta de emprego nos Estados Unidos e mudamos nossa vida para lá.”
K., 28 anos, estuprada pelo namorado, na época, e mais dois, aos 27
“Ainda hoje, eu acho que eles (o namorado na época e dois amigos dele) colocaram “bala” na minha cerveja. Eu não sei em que momento eu concordei em ir para o motel. Eu não sei quanto tempo durou. Eu não sei quantas vezes eles revezaram. Só dois dias depois, tive coragem de falar com uma amiga e entendi que foi abuso. No dia seguinte, fui à 52ª DP (Nova Iguaçu). O policial disse: “Então, você acha que foi estuprada?” E, antes de recolher meu depoimento, completou: ‘A senhora está nervosa. Não quer ir para casa pensar melhor? Bebeu além da conta, pode ter brigado com o namorado e está aborrecida. Essa acusação é séria’. Na Justiça, como o IML não provou nada, os três foram inocentados. E ainda alegaram calúnia e difamação. Aí o promotor deixou elas por elas: “Eles não te processam por calúnia e você deixa isso para lá”. Ele ainda disse na audiência: ‘Terminando isso aqui, todos evitam dor de cabeça’.”
F., 24 anos, estuprada aos 23, no caminho para o trabalho
“Quando eu caí, tomei dois chutes na barriga e ele pegou meus óculos e quebrou. O que parecia mais velho destravou a arma na minha cabeça e me ameaçou. Me xingando, ele disse: ‘Eu sei que você tá gostando’. Desmaiei. Voltei para casa e, no dia seguinte, fui fazer o registro. Chegando na delegacia, pedi para ser atendida por uma mulher, mas me disseram que não tinha. Aceitei falar com um homem. Comecei contando do assalto e ele já perguntou: ‘Mas foi assalto mesmo ou você queria um atestado para faltar o trabalho?’ e, depois, ‘Você deu mole, tinha que ter se ligado que era perigoso andar sozinha naquela região’. Mandei que ele tirasse o registro da agressão e colocasse só o assalto. E assim foi.”
Z., 30 anos, estuprada dos 6 aos 10 anos, pelo pai de uma amiga
“Ele era pai de uma amiga. Foram vários pequenos abusos que duraram anos (dos 6 aos 10) até culminarem numa tentativa mais assertiva. (Na última). Ele segurou meu rosto com muita força, me beijou e passou as mãos em mim. Quando a porta abriu e ele me soltou, saí correndo. Contei para os meus avós, mas minha família toda ficou em silêncio. Só me informaram que eu não iria mais ver minha amiga. Quando fiz 13 anos, questionei meus avós, e eles me contaram que, na época, procuraram um advogado, que os aconselhou a não prosseguir (com a denúncia). Ele disse que seria exaustivo para mim, humilhante, e que os policiais me colocariam em dúvida. Não fizemos queixa, por tudo que se sabe do tratamento às vítimas.”
Ana Clara Veloso e Elisa Clavery
Acesse no site de origem: Em ações por estupro de vulnerável, 63% não têm condenação ou punição (Extra, 05/06/2016)