(Agência Senado, 13/06/2016) Só haverá redução dos casos de estupro no país quando diminuir a objetificação sexual das mulheres, a ideia de que elas estão ao dispor do homem — dentro da chamada “cultura de estupro”. E isso não depende apenas da aprovação de leis, mas sim de um enfrentamento cultural e educacional contra a misoginia e o machismo. Esse foi o teor do debate da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) sobre o tema, realizado nesta segunda-feira (13).
Na opinião de Valeska Zanello, pesquisadora e representante do Conselho Federal de Psicologia (CRP), o processo de objetificação das mulheres, da ideia de que elas estão disponíveis e podem ser “tomadas” quando o homem desejar, mesmo que não queiram, está tão entranhado na sociedade que isso acabou “normalizado”, ainda que abominável. A mudança, observou, só virá com enfrentamentos no campo cultural, na alteração da visão de que a mulher deve estar disponível e possa ser “consumida” pelos homens. Ela defendeu, inclusive, interferência na comunicação de massa, citando as propagandas de cerveja e seus clichês como perpetuadores da cultura de estupro.
— A gente precisa de leis, esse é um ponto importante, não só para proteger da questão da violência, mas de intervenção social, de mudança cultural. É importante pensar em um tipo de controle da mídia, que tem papel fundamental na manutenção desse tipo de masculinidade [que objetifica a mulher] e na questão da educação. Mais do que nunca a gente precisa discutir gênero na educação — disse.
Consumo
A representante da Comissão de Direitos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Alinne Marques, também defendeu o controle da mídia. A seu ver, o marketing, em especial, tem uma ideia cruel, que adota uma estratégia baseada na pirâmide de Maslow, priorizando o consumo, objetificando o corpo.
— Ele coloca a mulher no patamar da necessidade fisiológica e de consumo do homem, como mecanismo para aumentar a publicidade, a venda e a renda — analisou.
Para Alinne Marques, os ataques não serão impedidos se não forem combatidas as causas: o preconceito e o machismo que alimentam a cultura do estupro e culpabilizam a vítima. Uma mulher usar short curto na rua nunca legitimará um crime, salientou. Crianças e bebês sendo abusados dão mostras de que a violência não ocorre simplesmente porque as vítimas não “se deram o respeito”, é algo mais profundo.
A representante da OAB sugeriu mudanças legislativas sobre crimes como o stalking, a perseguição às mulheres; a possibilidade de retirada do nome do pai abusador do registro da vítima; e o enfrentamento a violência psicológica que os demais filhos, testemunhas das agressões, sofrem dentro de casa e que muitas vezes passam a reproduzir na vida adulta.
“Populismo penal”
Carolina Ferreira, Doutora em Direito, Estado e Constituição, criticou o chamado “populismo penal”, a elevação das penas quando ocorrem casos com grande exposição na mídia. Em sua opinião, as penas para estupradores já são altas, elevadas pela Lei 12.015/2009, e chegam a 30 anos, mas isso não alterou a ocorrência dos crimes até agora. O Direito Penal tem respostas restritas, não resolvem o conflito, e o senso comum de que a sociedade estará mais segura com penas aumentadas não é real, disse.
Ela também apontou a existência de uma cultura de estupro no trâmite dos processos no Judiciário, quando os juízes desconsideram a palavra da vítima para entenderem ter havido o crime, por exemplo. E elogiou a criação do Observatório das Mulheres Contra a Violência do Senado, que pode auxiliar na mudança do cenário a partir de análise das políticas públicas e do monitoramento de dados, e não apenas na mudança das leis.
Também nessa linha, Soraia Mendes, doutora em direito pela Universidade de Brasília e professora do Instituto de Direito (IDP), defendeu a mudança do ensino em escolas e até mesmo em faculdades, que perpetuam a cultura do estupro ao, por exemplo, apontarem em seus manuais de Direito a relativização do não, da negativa de uma mulher ao ato sexual.
Cultura de estupro
A maioria das participantes reforçou a existência de uma “cultura de estupro” no país. Para Jolúzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), e Junéia Martins Batista, representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT), essa cultura se revela na banalização do crime, aceito e tolerado por parcela importante da população. Essa banalização faz com que a mulher vítima de estupro sinta medo e vergonha de denunciar a agressão sofrida, avaliou.
– O alto número de casos registrados e os casos subnotificados revelam uma triste realidade: o Brasil tolera e incentiva o estupro, a ponto de podermos afirmar que o crime faz parte da nossa cultura – frisou Junéia.
Silvia Badin, professora da Universidade de Brasília (UnB), lembrou que pelo menos um terço dos casos de estupro ocorrem no âmbito familiar ou praticado por pessoa conhecida da vítima. Isso contribui para a subnotificação.
— Nós mulheres sofremos um assédio cotidiano, dos nossos coordenadores, nossos chefes, nossos colegas, além do assédio nas ruas. Mas com a objetificação da mulher, nossa palavra é colocada em segundo, terceiro ou quarto plano — afirmou a docente, ao relatar a intimidação de vítimas de violência sexual.
Clementina Bagno, do Forum de Mulheres do DF e Entorno, ressaltou ainda que o estuprador não deve ser visto como um delinquente, um monstro ou um portador de transtorno mental que precise de tratamento. Em sua maioria, ele é apenas um homem, tido como superior às mulheres e movido pelo reflexo da cultura patriarcal e da relação de força e opressão por seus ataques. O abuso às mulheres negras é ainda mais numeroso, salientou.
Aplicativo
Durante a audiência pública, Alinne Marques e Aisla Amorim, advogada da Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero, anunciaram a criação de um aplicativo para smartphones chamado Rede de Apoio às Mulheres Vítimas de Violência. As criadoras do conceito do dispositivo explicaram que ele traz informações com os possíveis meios de denúncia, quem e quais instituições devem ser procuradas quando a mulher for violentada, e até mesmo a possibilidade de profissionais se cadastrarem para trabalhar de forma voluntária no atendimento às vítimas
— A gente só vai conseguir combater esse câncer da sociedade quando implantarmos políticas públicas integradas em segurança, saúde e assistência — disse Alinne.
Universidades
Único homem convidado a falar na audiência pública, Mozarte Simões da Costa Junior, representante da Fasubra Sindical e servidor da área de segurança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, relatou pesquisas mostrando a ocorrência de violência sexual nas escolas e universidades brasileiras.
— São meninas estupradas dentro de banheiros de escolas e universidades, que sofrem no trote, quando entram na faculdade, que sofrem dentro dos alojamentos das casas de estudantes das universidades brasileiras — afirmou.
Para Mozarte, é urgente colocar um fim ao abuso praticado por estudantes veteranos contra alunas que ingressam nas universidades. Ele destacou ainda a necessidade de prevenção e proteção das estudantes, além de medidas de combate à cultura de violência nos campi universitários.
Golpe
A maioria dos participantes manifestou-se contra a gestão provisória de Michel Temer, classificando-o como “golpista”. Eles consideraram que a atuação do governo interino promove retrocesso em políticas sociais, especialmente com a eliminação do debate de gênero e do programa “Escola sem Partido”, que pode afetar o direito à possibilidade de visão crítica do mundo, como lembrou Marcia Acioli, representante do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Ataque terrorista
O senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da CDH, leu no início da reunião uma nota pública registrando o que chamou de desagravo aos atingidos no massacre ocorrido em Orlando no último fim de semana, em boate frequentada por gays, lésbicas e simpatizantes. Na Nota, a CDH repudia a agressão, motivada pela homofobia, e ressalta a distância da “tão sonhada convivência pacífica e harmoniosa no planeta Terra”.
Paim instou a todos a refletir e debater a violência, também é comum no Brasil, contra minorias, negros, pobres, homossexuais, idosos.
— Isto é um crime que envergonha a humanidade, mostra o nível da violência e a falta de uma visão humanitária em nível internacional que estamos vivendo. Para mim, isso não é um caso isolado — disse.
Os participantes da audiência pública da CDH fizeram um minuto de silêncio em memória às vítimas.
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