(HuffPost Brasil, 14/06/2016) Orlando, madrugada de 12 de junho, 50 pessoas são mortas em uma boate LGBT e tantas outras saem feridas. Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 22 de maio, uma jovem indicou que foi estuprada coletivamente por cerca de 33 homens.
O que esses dois casos têm em comum, além da barbaridade e de atrair a comoção pública? Muito, e a forma como lidamos com esses casos diz muito de como compreendemos a violência.
No caso do Rio de Janeiro, em pouco tempo já começaram a circular fotos da vítima,print screens de posts do seu Facebook e uma série de informações sobre sua personalidade. Aos poucos, também se descobriu quem eram os estupradores e o mesmo aconteceu com eles: suas informações foram divulgadas para que toda a população soubesse quem foram as pessoas cruéis que cometeram a barbaridade.
No caso de Orlando não foi diferente. Rapidamente todo o mundo ficou sabendo quem era o assassino, que ele era muçulmano, havia jurado lealdade ao Estado Islâmico e mais no final do dia circulou o boato de que era frequentador da casa noturna e que possuía perfil no Grindr, um app de “pegação gay”.
Acredita-se que ao investigar a pessoa será possível explicar a violência, mas será mesmo?
Todo esse volume de dados pessoais sobre as vítimas e os agressores são levantados por duas razões. A primeira razão é a combinação entre a vontade de saber da população e a vontade de vender da mídia, que produz freneticamente informações para a população que deseja vorazmente consumir tudo sobre o novo escândalo global. A segunda razão – e a que me interessa aqui -, é que esses dados são levantados para explicar por que a violência aconteceu, para que as pessoas tentem dar algum sentido a barbaridade e descubram de quem é a culpa.
A partir dos dados levantados, pelo menos, duas teses são frequentemente formuladas. A primeira, de que a vítima é culpada pela violência. Seu comportamento, sua forma de vestir, tudo levava para aquele resultado. A segunda tese, de que o agressor era doente ou uma pessoa com sérios desvios, como no caso específico, o suposto fanatismo religioso islâmico.
Acredita-se que ao investigar a pessoa será possível explicar a violência, mas será mesmo?
Acredito que não.
A busca por informações pessoais da vítima e dos agressores talvez interesse ao sistema penal e suas regras de dosimetria da pena, mas não deveria interessarpara o debate público, pois promete explicações que não consegue dar e desvia o foco para o sujeito, quando deveria estar em outro lugar.
Outro ponto em comum entre os dois casos é o fato de que eles não são casos isolados. Com certeza são casos extremos e com dimensões que fogem do comum, mas o estupro de meninas e o assassinato de pessoas LGBT acontecem diariamente, com uma frequência muito maior do que gostaríamos de admitir.
Há uma regularidade perversa nesses casos, que acontecem frequentemente, com requintes de crueldade e tirando esses casos que se despontaram na mídia, tendem a ter uma certa aceitação social. Isso porque não é uma simples violência arbitrária, mas um tipo específico de violência que só pode ser entendido se pensarmos de forma sistêmica e não individual: o caso bárbaro de Orlando, guardadas as devidas proporções, não é diferente do assassinato de uma travesti na avenida de Belo Horizonte. Há fios que conectam todas essas violências e que precisam ser expostos, nomeados e enfrentados: o machismo e a LGBTfobia*.
A violência física e o estupro são ferramentas que essas opressões têm para nos dominar, para garantir que a opressão estrutural permaneça e se reproduza
A LGBTfobia e o machismo são formas estruturais de opressão e a violência física é apenas uma das formas com que se expressam. Essas formas de opressão atravessam e influenciam toda a nossa vida, desde a forma como andamos (“anda como homem!”), nos vestimos (“essa roupa não é adequada para uma mocinha”), quais empregos podemos ter, se é que podemos ter um emprego.
Elas são tão arraigadas em nossa sociedade que ganham uma aparência de “natural”, de modo que, na maior parte do tempo, nem vemos a opressão, ela se torna invisível. A violência física e o estupro são ferramentas que essas opressões têm para nos dominar, para garantir que a opressão estrutural permaneça e se reproduza, para punir aquelas pessoas que ousam fugir dos padrões.
É por isso que a pergunta pelas características individuais dos envolvidos no caso pouco ajuda, pois não dá conta da dinâmica coletiva e sistêmica. Se queremos explicar essas violências, devemos olhar para a nossa cultura que diz incansavelmente que mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são inferiores, que manda tacar pedra na Geni, que chama torcedor de Maria.
Devemos olhar para nosso Estado que pouco faz para interromper essa violência e também para os políticos que se unem para retirar “gênero” dos planos de educação. A individualização desses casos não apenas erra em explicar, como serve de mecanismo para manutenção da opressão como invisível.
Por último, é importante lembrar que se uma violência é sistêmica e estrutural, a resposta não pode ser individual e pontual. Punir esse caso é como tapar apenas um dos buracos de um encanamento todo furado, a água simplesmente continuará a vazar por outros pontos. As respostas devem ser complexas, atravessar todas as dimensões de nossa vida e articular ações no plano coletivo e individual. Para que a mudança ocorra, no plano individual, a reprodução da cultura machista e lgbtfóbica precisa ser interrompida.
Isso significa um compromisso cotidiano com coisas aparentemente banais, como não tolerar mais uma piadinha lgbtfóbica no grupo de família do whatsapp, por exemplo. No plano institucional, é fundamental exigir do Estado uma série de medidas educativas, preventivas e punitivas como, por exemplo, inserir discussões sobre gênero nas escolas, criar abrigos para pessoas LGBT expulsas de casa, fomentar a produção cultural LGBT, impulsionar a empregabilidade de pessoas trans, investigar e punir os mais variados atos discriminatórios e violentos.
Não quero saber quem era o atirador, a menina ou os 33 homens, os detalhes de suas vidas não me interessam. Na verdade, todos nós criamos as condições para que esse tipo de tragédia continue a acontecer e por isso todos nós precisamos agir para que casos como o do Rio ou de Orlando nunca mais aconteçam.
*O movimento LGBT decidiu na 3ª Conferência Nacional LGBT por adotar oficialmente o termo LGBTfobia para abranger a homofobia, a lesbofobia, a bifobia e a transfobia. Acredito que o termo ainda é inadequado, mas para não perder o foco evitarei esse debate.
Acesse no site de origem: O massacre em Orlando, o estupro no Rio e a individualização da violência, por Thiago Coacci (HuffPost Brasil, 14/06/2016)