Novo olhar para entender o feminino e o masculino

21 de junho, 2016

(Brasileiros, 21/06/2016) Em especial para a Brasileiros, a antropóloga Heloisa Buarque de Almeida diz que não há nada de natural nos gêneros feminino e masculino. Tudo é aprendido. O momento é de multiplicidade identitária e inaugura uma maneira diferente de compreender o comportamento humano

Leia também: Gênero como organizador social (Revistas Brasileiros, 22/06/2016)

Parece simples e natural. Os nascidos com vagina são mulheres e os com pênis, homens. Dois gêneros e ponto. Só que nem sempre funciona assim. Tem gente que nasce com a genitália feminina e se identifica como homem, ou ao contrário, e não necessariamente extirpa ou troca o seu órgão sexual de origem. É complexo até porque tudo isso tem e não tem a ver com sexualidade ou desejo. Há ainda as pessoas que nascem com o sexo indefinido, mostrando que até a natureza não é totalmente binária. Mais do que isso: de certo ponto de vista, não há nada de espontâneo nos gêneros feminino e masculino. Tudo é aprendido.

A antropóloga Heloisa Buarque de Almeida - Foto: Luiza Sigulem

A antropóloga Heloisa Buarque de Almeida (Foto: Luiza Sigulem)

Quem explica e defende a ideia é Heloisa Buarque de Almeida, 51 anos, cientista social e antropóloga da USP, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e integrante do NUMAS, Núcleo de Marcadores Sociais da Diferença, também da universidade, que trabalha com gênero, raça e sexualidade. “Estamos vivendo um momento de multiplicidade identitária, tanto para o gênero quanto para a sexualidade, e isso exige que a gente pense de um jeito diferente do que sempre foi ensinado.”

Gênero
Temos uma hierarquia entre masculino e feminino, e as pessoas que atravessam essa fronteira colocam a questão binária em xeque. Vivemos em uma sociedade que dá a impressão de que ser homem e ser mulher é algo que resulta apenas da natureza, que tem a ver com o corpo, de como se formou a genitália, com os hormônios, a genética… Não dá para falar sobre gênero sem passar pelo contexto da sociedade e sem problematizarmos uma desigualdade de base. Vivemos numa sociedade que naturaliza as diferenças entre os sexos, em relação a poder, afeto, família, trabalho, acesso à justiça, que imaginamos ter a ver com a essência corporal porque, desde bebês, meninos e meninas são tratados de maneira diferente. Do ponto de vista da teoria de gênero, não tem nada natural, tudo é aprendido.

Cultura e natureza
O comportamento humano não se define pela natureza, mas pela cultura. Isso é uma das bases da antropologia e, se quiser, da sociologia. Quando um menino de três quilos nasce, o pai o levanta e diz: “Meu meninão”. Quando uma menina com os mesmos três quilos nasce, o pai a pega no colo já contendo seu corpo e diz: “Minha menina, tão bonitinha”. Desde o nascimento, damos mais liberdade corporal aos meninos. Isso não é de propósito, não é maldade nem é planejado. Aliás, aprendemos ser menino e menina antes de nascer, porque as expectativas sobre aquele ser já estão na escolha do nome, das cores das roupas… Depois, a criança aprende a ser um ou outro. Um menino que começa a chorar pode ouvir do pai que homem não chora e isso é um ensinamento para expressar seus sentimentos pela violência. Mais tarde, consideramos que a violência é natural nos homens.

Homens e mulheres
A sociedade não é igual em todos os lugares nem em todas as classes socais. Na década de 1930, Margaret Mead (antropóloga norte-americana, 1901-78) fez uma pesquisa de campo na região da Nova Guiné, na Oceania. Queria saber como as crianças eram criadas, pensando em como a cultura é aprendida. No meio do estudo, ela acabou mudando de tema porque dois colegas, seu marido e seu futuro marido, pesquisavam em aldeias próximas três grupos diferentes. Ela, então, percebeu que o que era pensado como feminino e masculino, em cada caso, era diferente. Em um grupo, Mead descobriu que homens e mulheres eram superafetivos, cuidavam das crianças, davam colo, tinham paciência. Em outro, homens e mulheres não tinham nenhuma paciência com as crianças, era uma sociedade que privilegiava a competitividade, a agressividade. E no terceiro ela encontrou uma espécie de inversão, se comparado ao que era encarado como natural nos Estados Unidos naquela época: uma sociedade em que os homens, com temperamento mais pacífico, cuidavam das crianças, enquanto as mulheres eram agressivas, briguentas, tomavam a iniciativa sexual. Qual a conclusão de Mead? Não tem nada natural no temperamento masculino e feminino, como os americanos daquela época pensavam. Ou seja, que as mulheres fossem maternas e os homens trabalhadores, competitivos… E que nem é natural pensar que homens e mulheres sejam diferentes porque duas das sociedades pesquisadas não tinham grandes diferenças entre os gêneros, embora houvesse divisão sexual do trabalho. Essa pesquisa, que resultou no livro O Sexo e o Temperamento, é um dos pontos de base para a teoria de gênero.

Organização social
As sociedades atribuem o que pensam ser masculino e feminino de forma classificatória e em muitas há uma hierarquia entre os sexos. O masculino tem mais poder e isso não quer dizer que as mulheres nunca tenham acesso a ele, porque há grupos em que elas, quando chegam à maturidade, ganham poder, como se fossem masculinizadas. Quando vemos uma mulher com poder, nosso senso comum masculiniza também. Aconteceu com Dilma Rousseff, há várias pesquisas que apontam isso.

Poder e feminismo
Feminismo deixou de ser um palavrão na década de 1970, virou um termo pejorativo e agora a gente pode falar de novo que é feminista, mas só em alguns lugares. Uma mulher que se diz feminista logo é vista como louca, mal amada, que não gosta de transar… Entenderam tudo errado. Mas eu tenho muita admiranção pelas meninas que hoje lutam por igualdade.

Machismo
É preciso abrir a cabeça. O machismo é ruim até para os homens heterossexuais e monogâmicos. Para seguir o padrão de masculinidade, o cara precisa ser macho, gostar de futebol, ser provedor. Ninguém consegue ser tudo isso. Os homens também querem uma folga, maior proximidade com os filhos, clamam por afeto, são carentes.

Héteros e gays
Nos anos 1980, os gays homens, digamos, saíram do armário. As lésbicas demoram um pouco mais para se expor. E hoje menina transa com menina sem se definir necessariamente como lésbica. Ganhar a arena pública é um fenômeno social. Mas não é algo exclusivo do mundo pós-internet. No passado, na Albânia, pais de mulheres podiam escolher uma delas para assumir o papel masculino. Em alguns países africanos, na década de 1930, mulheres assumiam o lugar masculino, ganhavam nome de homem, tinham as tarefas masculinas, os filhos de sua companheira eram considerados seus filhos biológicos. O que quero dizer é que essa fronteira do gênero já foi atravessada em diferentes contextos sociais, mas ganhou visibilidade com a internet e virou objeto de demanda por direitos. Começou com a luta política das mulheres, que tem a ver com a luta dos gays, que vai desembocar na luta dos trans. Cada luta tem sua especificidade, mas todas demandam por direitos, por respeito às suas escolhas, ao corpo, pela não violência. O Brasil é campeão de violência contra a mulher, contra gay e travesti. É tudo violência de gênero.

Cantada e assédio
O que se chamava de cantada agora é assédio e, portanto, um tipo de violência. Ser encoxada no metrô não é exatamente um elogio. É uma agressão. Quando Jair Bolsonaro fala que Maria do Rosário (ambos deputados federais) não merece nem ser estuprada, ele está supondo que o estupro é um elogio, quando, na verdade, é crime. E ainda existem muitas pessoas que acusam meninas de serem soltas, largadas, andarem de shortinhos… Quero dizer que temos, de fato, um senso comum desigual entre homens e mulheres, e vários níveis de violência naturalizados. Mas não temos respostas universalizadas sobre a questão do poder. Não sabemos como começa, porque começa. São apenas especulações. O importante é saber como funciona hoje e nunca é só uma causa ou uma consequência, mas múltiplas.

Intersexualidade
Há uma proporção considerável de crianças que nascem nem meninos nem meninas. São as intersexuais, as hermafroditas, que têm a genitália ambígua. Na República Dominicana há muitos casos, tanto que eles usam prenomes indefinidos, como René, Darcy. Em situação como essa, a tradição da medicina ocidental, nos anos 1950, optou pelo sexo feminino por ser uma cirurgia mais fácil, há mais técnica de vaginoplastia do que para construir pênis. Isso significa que nem a natureza é tão binária assim. Além disso, as pessoas, mesmo que não sejam transexuais, não são apenas masculinas e femininas. Todos nós temos traços de um e de outro, a natureza faz um contínuo entre um e outro.

Desejos
Imaginamos que uma mulher vai ter desejos por homem e vice-versa, e que essas pessoas vão ter uma prática heterossexual. No entanto, uma mulher pode ser feminina e ter desejos por outra, o que já foi considerado tabu. Mas não controlamos nossos desejos sexuais. Desde Freud, sabemos que há mais mistérios na nossa mente e nos nossos desejos do que gostaríamos. Estamos em um momento de multiplicidade identitária, tanto para a sexua­lidade quanto para o gênero. Tem, inclusive, gente que se diz assexual, que não quer sexo. E tem quem goste de homem, mulher, de todo mundo. Há ainda pessoas que não se importam com o sexo, o que encanta e atrai é o amor mental, a inteligência.

Transgênero
A pessoa que, ao nascer, é considerada de um gênero, mas se identifica com outro. Mas isso não tem sempre a ver com mudança de sexo. Uma pessoa trans não necessariamente deseja mudar seu sexo de nascimento, passar por cirurgias e mudar o corpo totalmente. A transexualidade não é exatamente uma novidade. Diferentes povos viveram a brincadeira de mudar de sexo, às vezes em certos contextos. No Brasil, homens se vestem de mulher durante o Carnaval.

“SER ENCOXADA NO METRÔ É UMA AGRESSÃO. TEMOS UM SENSO COMUM DESIGUAL ENTRE HOMENS E MULHERES, E NÍVEIS DE VIOLÊNCIA NATURALIZADOS?”

Tempo
A transexualidade não tem necessariamente a ver com sexualidade, desejo ou prática sexual e pode aparecer cedo. Na puberdade, quando os sinais corporais se tornam visíveis, a questão às vezes agudiza. O ideal seria que as crianças vivessem livremente na escola e na família. Quando eu era criança, o menino que não jogava bola era imediatamente tachado de bichinha, um inferno. Mas o que podemos fazer se uma criança quer ser chamada por outro nome? É difícil, sim, um pepino, só que precisamos ouvir o que essas crianças têm a dizer. Talvez a família não aceite e muito provavelmente os pais que aceitam sejam acusados de incentivar a criança a ir para “o lado errado”. Ainda temos dificuldade para entender a criança como pessoa. É claro que ela está em formação e por isso não sabe as consequências do que diz. É uma situação complexa. Reconheço a dificuldade porque a gente vê como ideal uma coerência entre o corpo e a vida social. Mas há casos de crianças e adolescentes trans em escolas de elite, que ainda têm um pensamento bastante conservador. Na pré-escola, algumas separam brinquedo de menina e de menino, atividades de um e de outro. Isso está errado porque ambos podem brincar do que quiserem, é positivo. Não serão homossexuais nem trans por brincarem de boneca ou bola. Algumas estão buscando orientação, tentando entender a transexualidade. Elas precisam conversar com os pais, com os colegas, com os pais dos colegas. Não existe fórmula ainda, vamos ter de começar a burlar protocolos para melhorar, inclusive, o atendimento. Mas devemos falar de saúde, prevenção, respeito. Muito. Não vamos mudar a estrutura de violência contra a mulher, a clássica, a doméstica, a mais banal, se não pudermos falar de gênero com as crianças e os jovens.

Perturbação
A transgeneridade era considerada uma espécie de desvio, de disfunção, de doença psicológica ou mesmo fisiológica. Em certa medida, para conseguir tratamento no sistema de saúde pública, a pessoa trans ainda precisa provar que enfrenta um sofrimento afetivo importante.

Paradoxo
Há uma maior visibilidade para situações e atitudes que nos questionam, nos deixam confusos, nos fazem pensar como vai ser daqui para a frente. Tudo isso exige que a gente pense de um jeito diferente do que sempre foi ensinado a pensar, que a gente saia do binário. Talvez, por causa dessa visibilidade, haja uma reação conservadora em uma sociedade que é machista, violenta e transfóbica. Por outro lado, existe quem entenda, inclua, e por isso é paradoxal, porque não é homogênea. Só quero dizer que essas reações conservadoras fazem a gente andar para trás com direitos já conquistados.

Cândida Del Tedesco e Fernanda Cirenza

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