(El País, 27/06/2016) Quem a vítima deve procurar, quanto tempo ela tem para prestar queixa e o que ela não deve fazer
O que exatamente caracteriza um crime de estupro?
De acordo com a da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), “crime de estupro é qualquer conduta, com emprego de violência ou grave ameaça, que atente contra a dignidade e a liberdade sexual de alguém”. O elemento mais importante para caracterizar esse crime é a ausência de consentimento da vítima.
Não é preciso haver penetração para que o crime se caracterize como estupro. Desde 2009 o Código Penal Brasileiro prevê, no artigo 213, que o estupro acontece quando há, com violência ou grave ameaça, “conjunção carnal ou prática de atos libidinosos”, prevendo penas que variam de seis a 10 anos de prisão, que podem ser agravadas caso o crime resulte em morte, lesões corporais graves ou seja praticado contra adolescentes de 14 a 18 anos incompletos.
As juristas lembram que não existe relação sexual com menores de 14 anos. “Nesses casos, o ato será sempre considerado estupro, pois crianças menores de 14 anos não possuem o discernimento necessário para consentir com a prática do ato”. O mesmo acontece quando a vítima, mesmo maior de idade, não tiver condições de consentir ou resistir ao ato como, por exemplo, pessoas muito embriagadas ou desacordadas. “Praticar atos sexuais com essas pessoas é, igualmente, cometer crime de estupro, que tem pena de prisão prevista de 8 a 15 anos”, explica a rede de juristas.
O que a vítima de estupro deve fazer imediatamente após o crime?
Chamar a polícia ou ir até uma delegacia. Lá, será registrado um Boletim de Ocorrência e a vítima será encaminhada em seguida a um hospital para realizar exames e receber medicamentos anti-retrovirais (para impedir a contaminação pelo vírus da AIDS, por exemplo) e a pílula do dia seguinte. O registro do BO é importante para que a vítima possa em seguida fazer o exame de corpo de delito, realizado no Instituto Médico Legal (IML).
Muitas vezes, a vítima é encaminhada para o hospital antes de ir a uma delegacia, principalmente quando está ferida. Mas é importante que o Boletim de Ocorrência seja registrado e o exame de corpo de delito feito para dar início às investigações.
“Entretanto, há uma grande crítica a esse procedimento, porque ele exige da vítima a consciência instantânea de que ela foi violentada, o que nem sempre ocorre”, diz a DeFEMde. “Por isso é muito comum que vestígios materiais e lesões físicas desapareçam antes da vítima se dar conta do que ocorreu ou, mais ainda comum, o tempo que vítima precisa para ter coragem para denunciar – lembramos que a maior parte dos casos de violência sexual é cometida por conhecidos e as vítimas têm medo de denunciá-los”.
As juristas lembram que esse procedimento padrão não abarca a importância do acolhimento para a vítima, “que muitas vezes se encontra sozinha, culpada e com vergonha”. Por isso, existem redes de acolhimento, que podem ser encontradas no Mapa do Acolhimento, e há centros municipais de acolhimento, como os centros de Referência da Mulher na cidade de São Paulo, por exemplo.
Para onde ela deve ir primeiro?
Recomenda-se que a vítima busque ajuda médica e realize o exame de corpo de delito no IML requisitado pela autoridade policial, a fim de colher possíveis provas do ato criminoso, para que o caso seja apurado. “Contudo, geralmente, a vítima precisa de suporte e não está preparada para tantos procedimentos burocráticos”, afirmam as juristas. “Sendo assim, recomendamos amparo e acolhimento e ressaltamos que essa tendência de imputar deveres à vítima nunca pode ser compreendida como algo capaz de gerar qualquer obrigação a ela. A vítima não deve nem é obrigada a nada”.
Ela pode deixar o local do crime?
Em alguns casos, a realização de perícia no local do crime pode auxiliar as investigações feitas pela polícia, “mas não existe qualquer motivo que impeça a vítima de sair do local ou recomendação no sentido de que ela deva permanecer ali”, diz a rede de juristas.
Pode tomar banho antes de procurar ajuda? Pode trocar de roupa?
Não é recomendado que a vítima tome banho antes de procurar ajuda. A rede de juristas orienta que não se lave dentro da vagina e que se preserve as roupas que a vítima estava usando no momento da agressão, “para que possa ser averiguada a presença de alguma secreção do crime”. A vítima pode, porém, trocar de roupas.
Como a polícia deve proceder?
Segundo a DeFEMde, a polícia deve proceder “com humanidade e tato com a vítima, sem ser sugestiva, nem perguntar de sua vida pessoal”. O procedimento legal “é de tão somente colher provas e depoimentos referente ao ato criminoso, nada mais que isso”.
Como o hospital deve proceder? Como são as etapas do atendimento?
De acordo com Daniela Pedroso, psicóloga do núcleo de atendimento à vítima de violência sexual do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, abre-se um prontuário médico e é feita uma avaliação clínica da violência.
Após esse procedimento, é feito o exame físico geral e ginecológico, descrevendo as lesões “minuciosamente”, além da coleta de secreção vaginal para posterior realização de exame laboratoriais que possam auxiliar na configuração do crime de estupro e, até mesmo, na identificação do agressor. “É importante que esteja registrado no relatório médico a condição da vítima ao chegar no atendimento”, diz a psicóloga. “Além das condições físicas, vale ressaltar que a condição psicológica da vítima tem valor legal para as medidas judiciais posteriores”, explica.
A quais medicamentos ela terá acesso?
À pílula do dia seguinte e à profilaxia para prevenção ao vírus HIV, à hepatite e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis.
A equipe de atendimento é feita de homens e mulheres ou somente de mulheres? Por que?
Daniela Pedroso explica que a equipe de profissionais do Hospital Pérola Byington, referência nesse tipo de atendimento, é composta por ginecologistas, pediatras – no caso de violência sexual contra crianças – enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais e psicólogos, homens e mulheres. “Porém, caso algum paciente não esteja confortável com a equipe de atendimento, pode solicitar a mudança”, diz a psicóloga.
Em até quanto tempo a vítima pode procurar ajuda no hospital para receber o coquetel antiretroviral?
“A profilaxia para prevenção ao vírus HIV deve ser aplicada em até 72 horas após à violência”, diz Daniela.
Ela pode tomar, por conta própria, a pílula do dia seguinte antes de procurar ajuda?
A psicóloga do Pérola Byington explica que a pílula do dia seguinte pode ser tomada em casa, pela vítima, em até 120 horas – ou cinco dias- após à violência. “Porém, vale ressaltar que quanto mais rápido a vítima tomar a pílula, maior será a eficácia do medicamento”, diz.
Quanto tempo após o crime ela pode tomar o coquetel oferecido no hospital?
Até 72 horas a partir da ocorrência da violência sexual, para maior eficácia do tratamento.
Como é o exame de corpo de delito? Quem pode tocar na vítima? Quem pode fazer esse exame? Onde ele é feito?
Esse exame é feito por uma médica ou um médico forense do Instituo Médico Legal (IML). Somente esse profissional está apto para examinar a vítima para constatar a violência física, ato libidinoso e para coletar possíveis provas do estupro.
Quanto tempo a vítima tem para procurar ajuda? Se o crime ocorreu há um ano, por exemplo, ela pode denunciar agora?
O prazo para realizar a denúncia muda de acordo com o caso:
Se a vítima for maior de 18 anos: ela deve realizar um boletim de ocorrência e entrar com uma representação até seis meses após o crime ter acontecido. Passado esse prazo, ela perde o direito de denunciar.
Se a vítima for menor de 18 anos ou vulnerável: o prazo é de 20 anos a partir do momento em que ela completa 18 anos.
A lei entende por vulnerável qualquer pessoa menor de 14 anos ou que tenha alguma enfermidade ou deficiência mental ou que não tenha capacidade de oferecer resistência, como nos casos de embriaguez, por exemplo. Se a vítima for maior de 18 anos e vulnerável, o prazo é de 20 anos a contar a partir da data do crime.
Nesse caso, não é necessário entrar com uma representação. Basta a vítima ou seu tutor fazer um boletim de ocorrência ou levar a notícia do crime ao Ministério Público, órgão responsável por mover a ação.
A vítima precisa procurar um advogado?
Ela não é obrigada a buscar um advogado para fazer o BO. Mas a orientação da DeFEMde é que a vítima procure um advogado para auxílio jurídico, e que esse profissional será necessário até a representação legal no processo e poderá também ser assistente da acusação, atuando junto com o Ministério Público.
A polícia pode perguntar detalhes da vida íntima da vítima? O que pode e o que não pode ser perguntado, por exemplo?
“De nada tem a ver a vida íntima da vítima com o crime de estupro”, dizem as juristas da rede DeFEMde. Elas explicam inclusive que o questionamento sobre a vida pessoal da vítima pode levar a polícia ao afastamento do cargo, assim como ocorreu no caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro.
“As questões a serem levantadas na delegacia devem estar relacionadas única e exclusivamente ao crime, suas circunstâncias, lugar etc”, dizem. “Perguntas como ‘qual a roupa que você estava usando?’ ou ‘você costuma se relacionar com mais de uma pessoa?’ e outras equivalentes são práticas amplamente rechaçadas”.
A questão do constrangimento é tão grave, que, por exemplo, ao se tratar de estupro de menor, é possível que a conduta da autoridade policial seja investigada por infringir o artigo 232 do estatuto da criança e do adolescente (ECA – Lei 8.069/90) que define com crime a submissão de criança ou adolescente sob sua guarda ou vigilância a vexame ou constrangimento.
Por que as delegacias para a mulher não abrem 24 horas por dia e nem aos finais de semana?
O horário de funcionamento das 132 delegacias da mulher existentes no Estado de São Paulo é de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. Questionada, a secretaria de Segurança Pública de São Paulo não respondeu por que o horário é restrito, apenas informou, por meio de nota, que “o registro de ocorrências de violência contra a mulher pode ser realizado em qualquer distrito policial e todos os policiais estão preparados para o atendimento desse tipo de caso, a registrar as ocorrências e adotar as providências necessárias, como encaminhamento para exames”.
As juristas da DeFEMde afirmam, porém, que as ocorrências acontecem em grande parte aos finais de semana, dias em que as delegacias se encontram fechadas. Para elas, nas delegacias tradicionais “não há preparo dos polícias em lidar com esse tipo de violência, sendo comum a realização de perguntas absurdas sobre o crime e sobre a vida pessoal da vítima, em uma clara conduta de culpabilização, responsabilização e descrédito da vítima”.
Marina Rossi
Acesse no site de origem: O que fazer em caso de estupro (El País, 27/06/2016)