(CartaCapital, 27/07/2016) O machismo na literatura se manifesta bem antes do mercado editorial. De forma sutil, empurra autoras para as margens e para o esquecimento.
Com alguma frequência, respondo a entrevistas. Ou tento, quando o volume de trabalho me permite. Fico feliz quando me procuram para falar de literatura, afinal, é meu trabalho, mas noto a repetição de uma mesma pergunta: “você já sofreu machismo no meio literário?”
Como se não bastasse o machismo galopante que transborda do mundo e a que estão sujeitas todas as mulheres, inclusive as escritoras, a pergunta vem com a expectativa de uma resposta contundente, com exemplos que escandalizem, com depoimentos tocantes. É onde costumo decepcionar.
Veja bem, é fácil responder de forma a satisfazer a pessoa jornalista ou o público a quem é destinada a matéria. Mas, considerando que o meio literário não é uma realidade à parte e que o machismo raramente começa e termina num só lugar, responder fica difícil.
Primeiro, porque a resposta mais completa é aquela que a pergunta não contempla. Mas é especialmente difícil porque a resposta está nas perguntas que não nos fazem. Nos exemplos que não existem. Nos “nãos” que nem chegam a ser ditos porque nem precisa.
O problema do preconceito de gênero é que dificilmente ele é explícito; ele está mais presente nas coisas que não vemos. Isso também na literatura: nos convites para eventos que deixamos de receber. Quando uma autora é deixada de lado para darem destaque a um escritor. Nas faltas de indicação a prêmios. No esquecimento.
Apesar da relevância do trabalho das escritoras, ainda é difícil vê-las podendo falar de seu trabalho nas mesmas condições que um autor pode falar. Nas mesas de debates compostas só por homens, por exemplo, eles podem transcender todas essas questões e falar de seus trabalhos, de seus personagens, de literatura.
Se convidada (e será raridade se numa mesa composta apenas de mulheres), a escritora provavelmente acabará tendo que falar sobre suas dificuldades, sobre o preconceito, sobre ser mulher e escrever.
Ser homem é não ter gênero, é pairar acima dele; enquanto uma mulher, não importa que seja escritora, cientista ou jardineira, será primeiramente e acima de tudo uma mulher.
A ausência está nas perguntas que não nos fazem, aquelas que são esquecidas enquanto vêm as questões sobre as nossas maiores dificuldades de escrever sendo mulher, o único assunto que nos cabe.
Mas as histórias que escrevemos não importam? Nosso trabalho, por si só, não interessa? Não podemos falar sobre literatura, pura e simplesmente? Essa é uma barreira difícil de romper.
A ausência também grita nas presenças. Alardearam que a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2016 seria a “FLIP das mulheres”. Como se 44% de autoras convidadas fosse uma quantidade exagerada de mulheres, como se uma participação que ainda não chega perto do equilíbrio de repente representasse uma dominação feminina – qualquer ruído é um escândalo quando tudo o que havia era silêncio.
Mas, apesar deste ter sido o ano com mais autoras na programação oficial, nenhuma delas era negra. Como se escritoras negras não existissem hoje, agora, aqui. E de novo, o esquecimento, o silêncio, a ausência.
Este é só mais um indício de como o machismo dentro da literatura se manifesta bem antes de chegar no mercado editorial; e, como dito, é um machismo que se manifesta de forma sutil, empurrando as autoras para as margens.
É o machismo de tornar as mulheres invisíveis. É o machismo da ausência de oportunidades. E isso vem desde muito cedo, desde quando as jovens mulheres, ainda mais quando são pobres, especialmente quando são negras, são desmotivadas a escrever; quando escrevem, têm dificuldade de ser publicadas; quando são publicadas não recebem tanta projeção.
Então, mesmo que rompamos uma série de barreiras para poder chegar a ser escritoras, mesmo quando conseguimos, ainda seremos barradas em algum momento. E nem poderemos usar isso como um exemplo contundente de machismo, afinal, não aconteceu. Nada existiu.
Esse “não estar” é mais cruel do que alguém fazendo um comentário machista na minha cara, porque é mais difícil apontar para essa ausência de oportunidades do que para um preconceito explícito.
Em seu ensaio Um Teto Todo Seu, Virginia Woolf propôs a seguinte reflexão: imagine que Shakespeare teve uma irmã tão inclinada à criação quanto ele; conseguiria ela alcançar o mesmo reconhecimento e fama que teve o irmão?
Judith, essa irmã hipotética, conforme Virginia desenvolvia a reflexão, “era tão audaciosa, tão imaginativa, tão ansiosa por ver o mundo quanto ele. Mas não foi mandada à escola.” Nunca foi incentivada a estudar, a ler, a escrever, a desbravar o mundo. Deveria se ocupar de afazeres domésticos e logo deveria se casar, com quem o pai desejasse. Mas ela fugiria e tentaria a sorte no teatro, que amava tanto quanto o irmão. Ela, no entanto, seria rejeitada. Jamais conseguiria escrever e se mataria em uma noite de inverno para ninguém nunca mais ouvir falar nela.
Ali, Virginia me apontou para o fato de que a maioria das escritoras que eu gostaria de ter lido nunca chegaram a escrever. As minhas escritoras favoritas que nunca conheci, se escreveram, não chegaram à minha época. Seus nomes foram apagados e seus trabalhos jogados no anonimato. Tiveram suas vidas empurradas para a miséria e para longe da ficção.
Não é um caso isolado de machismo dentro do meio literário que cria barreiras para as escritoras. É todo um sistema, presente no mundo no qual estamos imersas, que garante que fiquemos à margem.
São essas ausências que garantem que o escritor a quem se refere o Dia do Escritor, comemorado na última segunda-feira, dia 25, seja homem (como 72% dos autores brasileiros publicados) e branco (como 93,9% dos que escrevem literatura no Brasil). Então é sobretudo para as ausências que precisamos prestar atenção.
Acesse no site de origem: O machismo das ausências, por Aline Valek (CartaCapital, 27/07/2016)