(O Estado de S. Paulo, 03/08/2016) Dois casos dramáticos de violência doméstica tiveram grande repercussão nos meios de comunicação nacional e internacional. O primeiro caso teve como vítima a atriz Luiza Brunet, que segundo denúncia oferecida pelo GEVID do Ministério Público de São Paulo, contra seu ex-namorado Lírio Parisotto, este teria praticado crimes de lesão corporal leve e grave (o autor teria fraturado a costela da vítima e quebrado seu dedo), em episódios ocorridos nos EUA e no Brasil, contra a atriz.
O segundo caso ocorreu no interior de Goiás, onde a vítima, de apenas 17 anos, nascida na cidade de Votorantim, teria sido mantida em cárcere privado e torturada por mais de um ano por seu ex-namorado Gustavo Vinicius de Oliveira Bernardino (inclusive igualmente quebrando o dedo da vítima, com facadas, mordidas, socos, chineladas, atingindo a vítima com pedaço de ferro e vassouradas). Segundo a jovem vítima, o agressor costumava “bater nela” e “rir”. A jovem disse o seguinte: “Pedi a Deus para morrer”. O caso apenas foi descoberto após um acidente de trânsito, quando o corpo de bombeiros notou que os ferimentos da vítima não tinham relação com o acidente e a levaram ao hospital, onde ela pode contar o que estava sofrendo. Em ambos os casos as vítimas conseguiram romper com o silêncio.
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O Brasil nasceu sobre a colonização escravocrata e tradição cultural machista. Por esta razão, durante muitos anos, os atos criminosos praticados na esfera privada ficavam impunes. Note-se que é no espaço privado que as mulheres sofriam e ainda sofrem mais atos de violência. Aplicava-se a conhecida expressão de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.
Neste contexto, a lei Maria da Penha foi um divisor de águas, pois há 10 anos rompeu com este paradigma de violência doméstica e da impunidade total em atos criminosos praticados na esfera doméstica. Com efeito, esta lei tornou-se muito conhecida entre a população brasileira. Foi reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações a respeito do tema violência doméstica. Entende-se por violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, sexual ou patrimonial.
Ocorre que a cultura da violência doméstica contra as mulheres ainda existe, assim também as mulheres continuam, a despeito da legislação, silenciadas, e com medo de denunciar, o que gera, consequentemente, a impunidade. As estatísticas confirmam estas assertivas. Dados recentes da Organização Mundial de Saúde apontam que 30% das mulheres brasileiras afirmam terem sido agredidas por parceiro ou por alguém de seu convívio próximo. Relevante também outro estudo da OMS que indica que pelo menos 20% das mulheres agredidas pelos maridos permanece em silêncio. Um balanço do disque 180 aponta que 80% dos casos de violência doméstica reportados não chegam a ser denunciados.
Com efeito, embora a lei não tenha sido suficiente para eliminar a violência doméstica contra as mulheres, sem sombra de dúvidas foi responsável por dar visibilidade ao problema e para apontar, as tendências e os caminhos longos e árduos para as suas soluções.
As políticas públicas para as mulheres aumentaram muito, como ampliação do número de abrigos, do número de CREAS, dos Centros de Referência para a Mulher, com o incremento de discussões a respeito da desigualdade de gênero que atualmente é tema recorrente nas universidades, na formação de coletivos feministas, nos órgãos públicos como o Ministério Público, no sistema de justiça, na sociedade civil e na imprensa. O Ministério Público colaborou para efetivação destas políticas. Em Votorantim, por exemplo, firmou-se termo de ajustamento de conduta (acordo) inovador com o Poder Público Municipal que garante transporte para as vítimas de violência doméstica, oferece acesso à equipe multidisciplinar (atendimento psicossocial) e abrigo emergencial, tudo isto sob pena de multa em caso de descumprimento. Este é apenas um dos exemplos de como a lei pode e precisa ser efetivada, espontaneamente pelos poderes executivos Municipais e Estaduais, ou em colaboração com o Ministério Público.
Neste contexto, verificam-se duas etapas nesta evolução, a primeira etapa dos direitos humanos das mulheres, em especial de não serem vítimas de violência doméstica, iniciou-se com o reconhecimento formal destes direitos pela Convenção CEDAW (1979) e pela Convenção de Belém do Pará (1994), no âmbito internacional. Foi a própria Convenção do Belém do Pará que serviu de fundamento jurídico para que Maria da Penha buscasse amparo na esfera internacional ao seu direito, que estava sendo violando pelo sistema jurídico brasileiro, muitas vezes lento e ineficiente. E também no âmbito local, posteriormente ao caso, com a edição da Lei Maria da Penha.
A segunda etapa encontra-se em andamento, e consiste na efetivação destes direitos, por meio da execução de políticas públicas voltadas à mulher. O exercício desses direitos não virá de graça, estes terão que ser conquistados por todas as mulheres e homens que almejam viver numa sociedade mais justa, com mais equidade e menos violenta. É chegada a hora de rompermos com o silêncio, como fizeram a jovem e a atriz. Precisamos trabalhar no sentido da prevenção e repressão da violência doméstica. Uma mudança cultural na nossa sociedade é fundamental, pois só assim adotaremos as ideias de que “tapa de amor dói”, “mulher não gosta de apanhar” e “em briga de marido e mulher se mete a colher”. Assim, despidos de preconceito e discriminação, poderemos exigir que a lei Maria da Penha saia totalmente do papel e seja efetivada, possibilitando a todas as vítimas o pleno acesso à justiça e à rede de atendimento à mulher.
* Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, integrante do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático, promotora de justiça do GEVID – Grupo de Atuação Especial e Enfrentamento à Violência Doméstica, mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela UNSW, Sydney, Austrália e doutoranda em Direito, pela Universidade de Buenos Aires, Argentina