Lições da Maré: como combater a violência a partir de um projeto exclusivo para mulheres

11 de outubro, 2016

Os profissionais da Redes da Maré, organização da sociedade civil sediada no conjunto de favelas mais populoso do Rio de Janeiro, testemunham todos os dias a erosão da segurança pública e a endêmica violência contra mulheres e meninas.

(BBC Brasil, 11/10/2016 – acesse no site de origem)

Cerca de 140 mil pessoas vivem no complexo da Maré, distribuídas em 16 favelas. Esses profissionais tentam produzir e disseminar conhecimento no local, numa tentativa de romper com os usuais preconceitos e estereótipos que prevalecem sobre as pessoas que vivem ali.

Entre os muito projetos para os moradores estão iniciativas específicas para mulheres, que têm ajudado a combater a violência por meio da abordagem de gênero.

Palavras como poder, sabedoria, mulher e poderosas escritas num azulejo

Redes da Maré tenta romper com preconceitos e estereótipos sobre as favelas (Foto: Cortesia Cathy Mcilwaine)

São muitos os projetos em segurança pública e direito das mulheres, entre os quais se destaca o Maré de Sabores, que trabalha exclusivamente com elas, treinando-as para serem chefes de cozinha e oferecendo às participantes autonomia financeira e um ofício.

A medida trabalha com a independência e autoestima das mulheres. Deu tão certo que também tem ajudado quem sofre com violência doméstica a deixar seus parceiros agressores.

Há ainda o programa “Legítima Defesa”, que oferece um espaço permanente para o diálogo sobre segurança pública. Trata, especialmente, dos direitos de todos os residentes, inclusive das mulheres, à segurança, e mobiliza ainda uma série de campanhas sobre cidadania para todos.

Mulheres da Maré durante atividade numa sala de aula

Projetos têm provocado resultados animadores (Foto: Cortesia Yara Evans)

A Redes reconhece, porém, que tem de aprender mais sobre a violência contra mulheres e meninas – está em busca de evidências sobre essas experiências para entender como as mulheres pensam e sugerir formas eficientes de combate à violência que as aflige.

Pensando justamente nisso, uma importante iniciativa está acontecendo nesse momento na Maré, e exemplifica bem o propósito da Redes da Maré de investir na melhoria da condição de vida das mulheres que vivem no complexo.

Batizado de “Cidades Saudáveis, Seguras e com Igualdade de Gênero: Perspectivas Transnacionais Sobre a Violência Urbana Contra Mulheres e Meninas (VCMM) no Rio de Janeiro e em Londres”, o projeto é uma parceria que envolve a Universidade Queen Mary, de Londres, o People’s Palace Project do Reino Unido, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Redes da Maré.

 

 

Mulheres e crianças num beco na Maré

Projeto tenta entender como as mulheres pensam (Foto: Getty Images)

Os conhecimentos e ações produzidas por essa parceria serão, sem dúvida, de grande relevância para um melhor entendimento do papel que o município do Rio de Janeiro pode ter na garantia do direito à segurança pública e combate à violência contra mulheres e meninas nas cidades brasileiras.

Isso porque explora soluções de combate à violência sob a perspectiva da própria vítima. O projeto pretende enfatizar o papel essencial do município na redução da violência contra mulheres e meninas, aprendendo com elas.

Avanços e desafios

Mulher ostenta estandarte com os dizeres

Protesto na Maré: a questão da segurança pública deve ser enfrentada por todos (Getty Images)

Nos últimos anos e até recentemente, o Brasil avançou de forma significativa, a partir da ação de diferentes atores institucionais, em relação à redução das desigualdades socioeconômicas, à inserção de dezenas de milhões de pessoas no mercado de consumo e saída da linha da pobreza.

Da mesma forma, foi ampliada a presença e a relevância do país no cenário internacional; a estrutura econômica cresceu e se diversificou, além de terem sido ampliados os direitos de determinadas parcelas da sociedade, como os negros e os homossexuais, por exemplo.

A questão da segurança pública, todavia, de forma geral não foi devidamente enfrentada na sociedade brasileira no período.

Assim, a melhoria dos indicadores sociais e econômicos não se refletiu numa melhoria global dos indicadores de segurança pública, em especial o mais grave e perverso dos fenômenos: a violência contra as mulheres e os jovens negros das favelas e periferias.

Mulher caminha pela Maré com criança no colo e caixa na cabeça

Mulheres sofrem desproporcionalmente impactos da insegurança pública (Foto: Getty Images)

Dados macabros

O Mapa da Violência do Brasil de 2014 apresenta dados macabros: são 154 homicídios diários, totalizando 56.337 assassinatos anuais – cabendo ressaltar que muitas pessoas, aparentemente desaparecidas, não entram nessa conta.

Apesar desse grave quadro, estamos longe de ver soluções estruturais e consistentes para a garantia do direito à segurança pública no Brasil. Um dos principais limites para isso é o fato da Constituição do país definir o tema como uma atribuição basicamente dos governos estaduais.

Com isso, durante anos os outros entes federativos – União e municípios – evitaram se envolver com o tema, temendo, em geral, sofrer o desgaste decorrente de sua complexidade e magnitude. Logo, uma mudança na legislação, contemplando a atuação de todos os entes federativos no tratamento da segurança pública, de forma diferenciada e integrada, é urgente.

A partir de 2003, o governo federal pareceu que iria enfrentar de forma mais global o problema, construindo um programa que buscava integrar a questão da segurança pública e a cidadania – que ganhou o nome de Pronasci.

Na perspectiva de uma segurança cidadã, ações de prevenção, de inteligência, integração entre os operadores da Justiça e do Direito e melhor estrutura para as forças policiais foram assumidas sob coordenação do Ministério da Justiça.

Forças armadas na Maré

Soluções para redução das taxas de criminalidade devem envolver municípios (Foto: Getty Images)

Esse esforço, já a partir do governo Dilma, foi reduzido, e com o atual governo tem sido sinalizada uma postura profundamente conservadora, com ênfase no armamento policial e aumento das ações repressivas, além do fortalecimento da “Guerra às Drogas”.

O papel dos municípios

O país, por sua vez, vive uma eleição municipal que elegerá o novo prefeito e a Câmara de Vereadores em todas as cidades brasileiras. Uma das novidades dessa campanha – especialmente no caso do Rio de Janeiro, onde a crise de segurança pública tem se agravado -, é o fato de que o tema tem sido debatido, assim como o papel que o município poderia ter em relação a esse direito.

Já não era sem tempo: a violência e os crimes ocorrem de maneira direta nas cidades, que é onde as pessoas vivem; eles afetam de forma intensa o cotidiano dos seus moradores. Logo, não há como buscar soluções para a redução das taxas de criminalidade sem envolver a participação dos prefeitos e legislativos municipais no processo.

No entanto, uma posição que nos parece absolutamente equivocada tem dominado alguns debates: a defesa de que a guarda municipal seja equipada com armas de alta letalidade.

Militares em caminhão armados a caminho da Maré

A questão da segurança pública ainda é um desafio a ser enfrentado (Foto: Getty Images)

Essa medida tem sido proposta pelo atual prefeito de Niterói e por alguns candidatos a prefeito no Rio de Janeiro, apesar do secretário de Segurança do Estado já ter se declarado contra essa posição, pois isso tenderia a aumentar as situações de enfrentamento no cotidiano da cidade.

Prevenção como estratégia

Ao contrário dessa perspectiva, acreditamos que o eixo central da ação dos municípios deve ser a prevenção.

Para isso, um primeiro passo seria preparar a prefeitura para que tenha condições técnicas de realizar diagnósticos das dinâmicas de violências e criminalidades características nos seus territórios.

O planejamento e definição de prioridades de investimentos no campo da prevenção teriam como base as avaliações decorrentes das demandas, de usuários e agentes, no campo da segurança.

Em sequência, devem ser criados gabinetes de gestão integrada para unir atores de diferentes órgãos, que utilizariam os dados para construir a intervenção global nos territórios.

Por fim, os gestores das diferentes áreas do governo poderiam assim incorporar em suas ações nos territórios – especialmente nas áreas de educação, saúde, desenvolvimento social e cultura – iniciativas que levem em conta a segurança como um tema atinente ao seu trabalho.

Essas iniciativas integradas, com objetivos e metas, colocariam a questão da segurança pública em um patamar de acordo com sua gravidade e importância no cotidiano dos moradores da cidade.

É, portanto, evidente o papel de liderança que um prefeito pode cumprir junto à segurança pública. Basta assumir que isso é uma questão que lhe compete e que só pode ser efetivamente tratada com sua contribuição objetiva.

Mulher brinca com criança na Maré

No Rio de Janeiro, 17 mulheres são vítimas de homicídio por dia (Getty Images)

O que nos parece essencial é que as experiências com a das mulheres atendidas pela Redes da Maré, por exemplo, sejam levadas em conta explicitamente nessas iniciativas integradas.

As mulheres constituem mais da metade da população brasileira e sofrem desproporcionalmente uma série de impactos da insegurança pública e da violência. Isso é importante, sobretudo, em cidades como o Rio de Janeiro, onde 17 mulheres, por dia, são vítimas de homicídio, tendo como razões diretas a questão de gênero e a violência sexual.

Eliana Sousa Silva, Cathy McIlwaine, Paul Heritage*

*Esse é o quarto de uma série de artigos que será publicada pela BBC Brasil em parceria com o Urban Transformations Network e o UK Economic and Social Research Council (UT-ESRC) sobre presente e o futuro das cidades brasileiras. Os artigos publicados não traduzem a opinião da BBC.

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