Mulheres têm o dobro de chances de desenvolver transtorno causado pela violência, apontam estudos

14 de julho, 2017

‘As pessoas começam a olhar diferente, só quem vive entende a dor do outro’, diz vítima de assalto diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático.

(G1, 14/07/2017 – acesse no site de origem)

Eu queria que meu filho já tivesse morrido”. O pedido desesperado de uma moradora do Morro Dona Marta, em Botafogo, é resultado de anos de sofrimento constante, mas invisível para outras pessoas. O jovem faz parte do “movimento” e, todo dia, ela acha que vai acordar e receber a notícia de que o seu filho foi assassinado por traficantes rivais ou pela própria polícia.

Grávida vítima de bala perdida em tiroteio relata traumas após o nascimento da filha (Clique na imagem para assistir ao vídeo da matéria)

A morte do filho, para ela, seria a chance de minimizar a dor e a angústia que sente diariamente. A expectativa da tragédia vem acompanhada de crises de ansiedade, insônias e mudanças de humor repentina.

Pesquisas promovidas pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com outras instituições, apontam que as mulheres têm o dobro de chances de desenvolver transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) causado pela violência (veja sintomas no fim da reportagem). Entretanto, os homens de 18 a 30 anos são muito mais expostos à violência que o sexo oposto.

“Para cada homem com TEPT, existem duas mulheres com o transtorno. Um grande problema desse transtorno é que ele acomete, muitas vezes, o indivíduo numa fase inicial adulta, quando a pessoa está começando a vida produtiva. Os idosos são menos expostos a esses eventos traumatizantes”, explica William Berger, psiquiatra, professor adjunto da UFRJ e pesquisador do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre Stress (LINPES)

Para Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadora e coordenadora científica do departamento de estudos de violência e saúde da Fiocruz, as mulheres sofrem mais, principalmente as que são mães ou as que perderam filhos por causa da violência.

“O que percebo nas conversas que tenho com mulheres que moram em algumas comunidades do Rio é que muitas sofrem de uma tristeza profunda, têm insônia, vivem com uma memória constante do sofrimento e umas que transformam suas dores em ódio”, relata a especialista.

Na visão dos pesquisadores, as mulheres são mais suscetíveis, principalmente, por causa de questões culturais.

“As mulheres também sentem mais satisfação que os homens em admitirem e relatarem os sintomas de TEPT. É comum homens verem estes sintomas como sinal de fraqueza e não os relatarem. Questões hormonais também parecem estar envolvidas”, justifica Berger.

Karine foi baleada quando estava grávida de 7 meses; sua filha Maria Teresa demorou a falar (Foto: Marcos Serra Lima)

Karine foi baleada quando estava grávida de 7 meses; sua filha Maria Teresa demorou a falar (Foto: Marcos Serra Lima)

Karine Rangel viu sua vida por um fio ao passar por um tiroreio há cinco anos. Após sair de uma festa de casamento, em Campo Grande, na Zona Oeste, ficou no meio do fogo cruzado entre policiais e bandidos. Grávida de 7 meses na época, foi baleada na perna dentro do carro em que estavam seus pais, seu primeiro filho e marido.

Sua filha Maria Teresa, hoje com 4 anos, nasceu sem nenhum problema físico, entretanto, por conta da carga emocional de estresse que recebeu quando estava na barriga da mãe, falou apenas aos 3 anos de idade, teve dificuldade de se relacionar com as pessoas e mantinha um comportamento introspectivo até bem pouco tempo.

“O mundo para a Maria Teresa, no ventre, já se mostrou uma ameaça. Ela nasceu assustada. Aos seis meses não interagia. Foi aí que percebi que tinha que conquistar a minha filha”, relembra Karine, que por conta do episódio do final de sua segunda gravidez ficou com trauma de engravidar novamente.”

Graças a um acompanhamento psicológico e aulas de balé, a pequena Maria tem tido muitos avanços. Quando ela mostra um sorriso para mãe, é pura felicidade. “Maria reage às situações de conflito de uma forma diferente da nossa. Cada evolução dela é uma vitória para a gente.”

Mulheres do medo

K. N., de 25 anos, luta contra a depressão e o transtorno de estresse pós-traumático. Ela foi sequestrada por dois criminosos no Recreio, Zona Oeste do Rio, em 2015, e ficou 7 horas sob o poder dos bandidos. Pensando que não teria chances de voltar para casa viva, se agarrou na Bíblia que foi jogada em seu peito.

Vítima de sequestro desenvolveu traumas após sofrer violência (Clique na imagem para assistir ao vídeo da matéria)

“Um dos momentos mais marcantes foi quando o bandido jogou a Bíblia em cima de mim e falou: ‘Segura porque você vai precisar dela'”, relembrou K.

Os sintomas do trauma só apareceram um ano depois do crime. K. parou de andar sozinha nas ruas, tinha crises constantes de síndrome do pânico, se afastou dos amigos e até hoje acredita que nunca mais vai se curar da doença.

Por conta dos remédios controlados que tomava durante seu tratamento psiquiátrico, K. perdeu um bebê.

“Quando eu tive que tirar meu neném foi a pior dor. Eu tinha certeza que ia ficar boa quando descobri que estava grávida, que ia me curar da depressão, era como se o meu sofrimento não importasse mais. Esse neném era a força que eu precisava. Poucos dias depois, eu tive que tirar porque o bebê estava sendo gerado nas trompas. Fui do céu ao inferno”, conta K., aos prantos.

Nas pesquisas feitas por Maria Cecília, que já publicou diversos livros sobre temas que relacionam violência e saúde, mulheres que tiveram algum evento traumatizante em decorrência da violência apresentam sintomas diversificados.

“Essas mulheres e mães chegam falando de vários sintomas que têm. Cronificação de problemas, como dores de cabeça. Sofrem também de dor abdominal e lombalgia, sangramento e corrimento vaginal, dores, distúrbios no sono, na alimentação, começam a fumar, abusar de drogas e bebidas, têm complicações na gravidez e abortos induzidos os espontâneos. As mulheres vítimas são mais propensas a ter filhos com baixo peso, desnutridos, vulneráveis e com maior chance de mortalidade infantil”, conclui a especialista.

Ódio e dor

Já se passaram quase três anos, mas o dia 30 de dezembro de 2014 é sempre lembrado com raiva e dor por Carolina Amaral, de 32 anos. No auge de sua carreira como bancária, ela sofreu um assalto na agência em que trabalhava na época. Desde então, nunca mais foi a mesma.

Oito meses após o roubo, teve síndrome do pânico, depressão, tinha medo das pessoas nas ruas, no trabalho. Pensou em tirar a própria vida. “No dia em que soube que teria que voltar a trabalhar, pensei em me tacar pela janela”, revela Carolina.

Por conta das crises de choro, ansiedade e diagnóstico de que estava com transtorno de estresse pós-traumático, Carolina teve que se afastar duas vezes de suas funções, ficando ausente oito meses do trabalho cada vez que entrou de licença.

“Tenho pânico de flanelinha, acho que todo mundo agora vai me assaltar. Só percebi que estava realmente doente quando saí vagando pelas ruas e uma amiga minha me encontrou. Depois, procurei um psiquiatra, mas não aceitava os remédios no começo. Atualmente, tomo três remédios controlados diariamente”, revela.

Refém do medo, a bancária teve que mudar sua rotina, mudou de agência pelo menos duas vezes e se isolou dos amigos.

“Uma vez, me mandaram para uma agência que era 90 km de distância da minha casa, ia dirigindo, mas foi melhor do que voltar para o lugar onde tudo aconteceu. Minha carreira praticamente acabou. Os chefes no banco não entendem, você se torna uma pessoa doente. Aí acaba se isolando, tendo uma vida de privações. As pessoas começam a olhar diferente, só quem vive entende a dor do outro.”

William Berger explica que o transtorno de estresse pós-traumático, em 80% dos casos, está associado a alguma comorbidade psiquiátrica: “Ou seja, depressão, abuso de substâncias como álcool e drogas, e ele tem taxas de suicídio de 15% a 20%, em alguns estudos. Então, é um transtorno muito grave e incapacitante”.

Os transtornos também podem transformar cargas emocionais em sentimentos de ódio e raiva. A pesquisadora Maria Cecília conta que conheceu uma mãe que, após ver seu filho ficar paraplégico ao ser atingido uma bala perdida, passou a odiar policiais depois do trauma.

“Essa mulher teve que parar de trabalhar, o marido se separou, esse filho fica muito triste, e ela não se conforma. Essa mãe tem um ódio dentro dela e esse ódio se manifesta contra a polícia. Essa questão dessa mãe me chamou muita atenção porque essa pessoa exalava ódio. Perguntei por que ela tinha esse sentimento, e ela me respondeu que da polícia elas podem reclamar e que em relação aos traficantes têm que se calar. Então foi a forma que ela encontrou de colocar sua dor pra fora”, analisa a pesquisadora.

Sintomas 

Especialistas respondem perguntas sobre transtornos causados pela violência (Clique na imagem para assistir ao vídeo)

Transtorno de estresse pós-traumático é uma doença psiquiátrica que surge em decorrência de alguma experiência traumatizante. São quatro os principais grupos de sintomas:

  • vítima revive o trauma o tempo todo, não consegue afastar a memória, às vezes por anos;
  • isolamento: vítima evita qualquer pessoa ou situação que possa lembrar o trauma, inclusive amigos e familiares;
  • sentimento de culpa distorcido em relação ao trauma, sensação de que a vida é ruim;
  • hipervigilância, insegurança, insônia, irritabilidade e comportamento autodestrutivo (saiba mais sobre a doença no vídeo acima).

Patricia Teixeira e Felipe Grandin

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