A crítica a uma obra de arte não pode nunca chegar ao extremo de boicotá-la pela força. Isso é fascismo
(El País, 14/09/2017 – acesse no site de origem)
Ao cancelar a polêmica exposição Queermuseu, inaugurada havia um mês no Santander Cultural de Porto Alegre, o banco agiu contra a tradição artístico-cultural da família Botín, que o criou. O Santander, que hoje mantém acordos com mais de mil universidades no mundo, ativo também na formação acadêmica e artística do Brasil, foi sempre sensível às artes e à cultura. Paloma O’Shea, esposa do falecido patriarca e presidente do banco, Emilio Botín, fundou na Espanha a Escola Superior de Música Rainha Sofia, sendo também conhecida como uma das maiores promotoras da música espanhola. E seu esposo, após aterrissar no Brasil sob a tutela do então presidente Lula, manifestou o desejo de ter uma projeção cultural importante no país com a criação do Santander Cultural de Porto Alegre, sede da polêmica exposição.
O velho Emilio se apaixonou tanto pelo Brasil que, num encontro universitário, disse que para se sentir plenamente brasileiro só faltava saber pronunciar bem a palavra “pão”, algo que eu mesmo ainda não consegui depois de 18 anos aqui. Os ataques contra a exposição de arte foram motivados por dois temas que ainda são tabus para muitos brasileiros: a religião e a diversidade sexual. As críticas à exposição são mais do que legítimas, pois ninguém é obrigado a gostar de uma obra artística. E pode-se também criticar o fato de que as pessoas não perceberam que a mostra era para adultos. O que não é tolerável é que uma exposição com obras de autores mundialmente reconhecidos seja boicotada a ponto de ser cancelada pelos organizadores.
Tratava-se de uma exposição que ninguém era obrigado a visitar. E quem compareceu tinha todo o direito de manifestar sua queixa, desagrado ou entusiasmo. O que não se pode, num país livre, é querer censurar ou proibir uma manifestação artística. A fronteira entre a crítica e a censura é muito sutil e perigosa. Todas as intolerâncias costumam ter origem no “não gosto disso”. A crítica a uma obra de arte, até mesmo a mais ferina, não pode nunca chegar ao extremo de boicotá-la pela força. Isso é fascismo.
Ao longo da História, já existiram aqueles que não gostavam da democracia e suas liberdades – e as cancelaram. Aqueles que não gostavam dos judeus e os exterminaram. Aqueles que não gostavam dos livros e jornais e os queimaram nas fogueiras da Inquisição. Hoje, há pessoas que continuam matando os gays porque não gostam deles. Ou que apedrejam templos religiosos que não estão de acordo com sua fé – como aconteceu com uma mãe de santo, obrigada à força a destruir seu próprio terreiro em Nova Iguaçu, no estado do Rio.
Toda ferida à liberdade de expressão, por mais que esta possa criar susceptibilidades, é uma porta aberta à intolerância. E, de censura em censura, chegamos à barbárie das ditaduras, todas elas alérgicas às diferenças e fomentadoras de tabus. Durante a ditadura franquista, que reinou na Espanha durante 40 anos, censurava-se inclusive a linguagem. Recordo que um censor do Governo retirou um artigo que eu havia escrito para o jornal Pueblo, de Madri, dizendo que era um texto “contra a violência infantil”. O censor certamente logo pensou que estava falando de violência sexual.
O medo do sexo foi também outro dos fantasmas e obsessões dos ditadores. Quando estreou o filme O Último Tango em Paris, o franquismo o proibiu na Espanha, e as pessoas viajavam até a França para assisti-lo. Toda censura é estéril e acaba fomentando, paradoxalmente, a curiosidade pelo proibido e novos anseios de liberdade. Assim, o Santander cometeu um deslize ao fechar a exposição. Foi escrito que o banco tomou a decisão temendo perder clientes. Não teria sido nada grave, se consideramos que tem 125 milhões de correntistas no mundo todo. Isso sem contar que talvez até poderia tê-los ganhado se tivesse a coragem de manter a exposição como um princípio de defesa da liberdade de expressão cultural. Assim, acabou dando apoio à parte mais conservadora e intolerante do país. Sua atitude deveria ter sido, ao contrário, colocar-se do lado dos que se esforçam em abrir novos espaços de liberdade frente ao crescimento de tantas intolerâncias, que observamos em governos cada vez mais conservadores e machistas.
A arte tem que ser livre em suas expressões e criações. É a diferença entre cultura e doutrina, entre liberdade de ideias e intolerância do pensamento único. Não deve haver altares, laicos ou religiosos, para sacrificar a liberdade. Começamos condenando as diferenças (ou as coisas que nos desagradam) e terminamos nos fornos do extermínio.