Apelação questiona decisão do juiz Leandro Cano, que absolveu pai que agrediu filha de 13 anos com fio elétrico após descobrir que ela não era mais virgem
(CartaCapital, 21/09/2017 – acesse no site de origem)
O promotor de Justiça Substituto do Ministério Público de São Paulo, João Paulo Robortella, classificou como machista a decisão do juiz Leandro Jorge Bittencourt Cano, que absolveu o pai que espancou a filha com fio elétrico após descobrir que a menina, de 13 anos, estava namorando e não era mais virgem. O caso ocorreu em janeiro de 2016.
Para o magistrado do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Guarulhos, o pai exerceu seu “direito de correção”. O Ministério Público, que representava a adolescente, está apelando da decisão, proferida na última semana. Além de bater na menina, o pai também cortou com uma tesoura seu cabelo curto.
No texto, o promotor critica principalmente a justificativa apresentada pelo pai para “corrigir” a filha: a perda da virgindade.
Em depoimento, a adolescente afirmou que a intenção do pai foi castigá-la. Em juízo, ela narrou que “O pai pegou seu aparelho celular e descobriu que estava namorando e havia perdido a virgindade. Ele ficou nervoso e agrediu a depoente repetidas vezes com um cabo, além de cortar seus cabelos com uma tesoura”.
“Ora, diante desta motivação, pergunta-se: e se fosse um filho adolescente do sexo masculino que tivesse perdido virgindade, será que o apelado adotaria a mesma postura? Até onde a conduta da filha seria reprovável o suficiente para merecer um castigo pelo genitor na sociedade atual? Ou ainda: por qual motivo, após agredir severamente a filha, o acusado, não satisfeito, ainda cortou seus cabelos?”, escreveu.
Para Robortella, a resposta óbvia para essas questões apenas expõe a carga de machismo “que se encontra impregnada não só na conduta criminosa e na sentença ora analisadas, mas também em significativa parcela da sociedade”.
O juiz negou que o caso se tratou de violência de gênero, pois acatou a declaração do pai de que agiria da mesma forma caso se tratasse de um filho. Por fim, considerou que não há provas suficientes para afirmar que o réu utilizou “meios disciplinares de modo excessivo”. Sobre o corte de cabelo, o juiz entendeu que o pai desejava “protegê-la de ameaças” mantendo-a em casa.
Segundo a apelação, o exame de corpo delito revelou que a menina sofreu oito “equimoses linerares de 8mm de largura, medindo entre 9cm e 22cm de extensão na região supra clavicular e escapular esquerda, e cabelo cortado curto”.
A mãe da adolescente, na condição de testemunha, corroborou o depoimento da filha e confirmou as agressões realizadas pelo ex-companheiro.
Além disso, o réu confessou parcialmente a autoria do crime e deu como motivo para a agressão a intenção de “discipliná-la”.
No Brasil, crianças e adolescentes têm o direito de “ser educados e cuidados sem uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto”. Tal direito é resguardado pela Lei Menino Bernardo (13.010/2015), que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Para o promotor, o pai não só extrapolou os limites da correção como também tratou a filha como um mero “objeto” passível de ser subjugado à força, valendo-se da sua superioridade física e da vulnerabilidade da adolescente, “impulsionado por um problema social que, inclusive, justificou a edição da denominada Lei Maria da Penha”.
Ainda no documento de apelação, o promotor lembra das dificuldades de aplicação da Lei Maria da Penha em um contexto como o brasileiro. Ele lembra que a legislação, considerada uma das melhores do mundo na questão da violência de gênero, teve como objetivo justamente visibilizar e elevar à condição de violação de direitos humanos a violência contra a mulher.
[A Lei Maria da Penha] “não encontrou campo fácil de aceitação em uma sociedade patriarcal,diga-se, aquela em que, culturalmente, as mulheres são subordinadas aos homens e o patriarcado existe como forma de dominação familiar, de modo que não se consegue aplicá-la de forma retilínea”.
Por fim, afirma que a violência de gênero “é impregnada por uma ideia genérica de masculinidade como posição de domínio, culturalmente tão poderosa e também arraigada ao inconsciente feminino que não permite o exercício livre do direito de escolha e a compreensão da abrangência da violação dos seus direitos”.