Grávidas que foram vítimas de estupro têm acesso dificultado ao aborto previsto em lei

03 de janeiro, 2018

Mulheres rodam por hospitais em busca da garantia do direito

(O Globo, 03/01/2018 – acesse no site de origem)

Mulheres que engravidaram após sofrerem violência sexual têm o direito, garantido por lei, de interromper a gestação. Mas muitas simplesmente não conseguem fazer o aborto legal nas unidades de saúde que deveriam oferecer o serviço. Grávidas marcadas pelo trauma e o constrangimento do estupro ainda são obrigadas a peregrinar por diferentes hospitais, viajar a outros estados ou até mesmo recorrer ao procedimento em clínicas clandestinas.

Estatísticas sobre interrupções de gravidez feitas de forma legal indicam a baixa ocorrência de abortos legais em decorrência de estupro. De acordo com um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2011, estima-se que 7% das vítimas de estupro engravidam. Só em 2016, o Brasil registrou 49,9 mil casos de violência sexual, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Isso significa que cerca de 3,5 mil mulheres podem ter engravidado após estupro somente no ano retrasado. No entanto, o país registrou em 2016 apenas 1.680 abortos legais, estatística que inclui não só os casos de estupro, mas também de fetos diagnosticados com anencefalia ou gestação com risco para a mãe.

O GLOBO solicitou o número de abortos legais apenas em caso de estupro realizados em todos os estados do país nos últimos três anos, mas apenas sete secretarias estaduais de Saúde responderam. Nesse universo, o estado com maior número de procedimentos realizados foi São Paulo: 740 mulheres tiveram a gravidez interrompida em hospitais estaduais entre 2015 e 2017. No período, a polícia paulista registrou 32,8 mil ocorrências de estupro.

No Estado do Rio, a Secretaria Estadual de Saúde registrou apenas cinco procedimentos do tipo entre 2015 e 2017 — todos realizados no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. No mesmo período, ocorreram mais de 14 mil casos de violência sexual no estado. No Espírito Santo, foram realizados 50 procedimentos para cerca de 400 ocorrências. Em outros dois estados e no Distrito Federal, a quantidade de estupros passou de mil, mas o número de abortos legais não chegou a 80 nos três anos pesquisados no Amazonas, em Goiás e no Distrito Federal.

PÉRIPLO DE 120 QUILÔMETROS

Em Pernambuco, foram registrados 79 abortos legais em vítimas desse tipo de crime entre 2015 e 2017, período em que foram registrados 5,9 mil estupros no estado. Um desses registros é o de Camila, que pede para não revelar seu verdadeiro nome. Hoje com 24 anos, ela foi estuprada em novembro de 2016 por um cunhado em Caruaru, no agreste pernambucano. Grávida, não conseguiu fazer o aborto em sua cidade. Teve de ir a Recife, a 120 quilômetros de onde vive, para exercer o direito de interromper a gestação legalmente, com a ajuda de uma ONG.

“Não denunciei meu cunhado logo após o estupro porque ele é policial e me ameaçou. Mas, quando descobri que estava grávida, fiquei desesperada. Fui à delegacia. Mesmo prestando queixa, me negaram o direito ao aborto legal. Fiquei completamente sozinha”, relata Camila.

Para especialistas, o preconceito e a falta de informação de parentes e profissionais de saúde sobre os direitos de vítimas de estupro levam muitas mulheres a buscar uma saída à margem do sistema de saúde. Encerram a gravidez sozinhas, em abortos clandestinos, mesmo correndo risco de vida. Em 2014, outro relatório do Ipea apontou que 67,4% das mulheres adultas que engravidam após violência sexual não buscam o aborto legal.

Camila ouviu da médica de um hospital público em Pernambuco que só seria atendida se mostrasse um boletim de ocorrência e um exame de corpo de delito para atestar o estupro. Mas a apresentação dos documentos não é obrigatória. Por lei, a palavra da vítima basta para o médico fazer o aborto.

— Há muita falta de informação, inclusive dentro dos serviços de saúde. Há enfermeiras e médicos orientados a não falar sobre aborto — afirma Paula Viana, coordenadora da ONG feminista Curumim, que ajudou Camila a interromper a gravidez indesejada.

PRINCÍPIOS RELIGIOSOS

Há ainda outros obstáculos, como princípios religiosos ou morais dos profissionais de saúde, que podem recusar realizar um aborto legal. A chamada objeção de consciência é garantida por lei aos médicos. O obstetra Cristião Rosa, coordenador da Global Doctor for Choice, rede de médicos que atua na redução da morte materna, faz ressalvas:

— É direito do médico, mas isso não significa omissão de socorro. O profissional acolhe a paciente, faz as profilaxias e garante o acesso a outro hospital.

O obstetra Olímpio Moraes, presidente da comissão de assistência pré-natal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), diz que há muitos casos de constrangimento.

— Tem médico que fica com a Bíblia rezando (para a grávida). Já vi paciente que ficou sem comida porque a enfermeira a acusou de fazer coisa do demônio. E outra agredida por gestantes e visitantes. Com medo, muitas mulheres acabam resolvendo sozinhas — diz.

A Câmara dos Deputados discute a possibilidade de proibir o aborto em qualquer circunstância, por meio de uma mudança no texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181 para estabelecer a “proteção da vida desde a concepção”. O obstetra Jefferson Drezett classifica essa ideia como “cruel, misógina e mesquinha”. Com o auxílio de dois cirurgiões, ele interrompeu, só este ano, mais de 300 gestações frutos de estupro no hospital estadual Pérola Byington, referência no atendimento à mulher em São Paulo. Segundo ele, muitas foram rejeitadas em outras regiões e até no próprio estado. Para Drezett, a decisão de capacitar melhor os profissionais da saúde deve partir dos gestores de cada estado:

— Tem hospital escolhendo o tipo de aborto que quer fazer.

‘NÃO CONSEGUIRIA AMÁ-LA COMO AMO MINHA FILHA’

Mãe de uma menina de 7 anos, Esther (nome fictício) foi estuprada em janeiro de 2017 por um ex-namorado, dentro da própria casa, na Zona Norte de São Paulo. Ela o convidou para consertar uma máquina fotográfica, mas ele aproveitou que a criança estava dormindo para violentá-la. Sentindo-se culpada e envergonhada, não registrou queixa, mas engravidou. Ela procurou uma maternidade próxima para fazer um aborto legal.

— Como colocar no mundo uma criança assim? Não conseguiria amá-la como amo minha filha. Eu praguejava contra ela. As pessoas pensam que é fácil, mas é um processo longo e não é qualquer um que sabe lidar. Eu era contra o aborto em qualquer situação, mas hoje vejo o outro lado. Um político não pode decidir por mim — desabafa Esther.

Sem se identificar, a obstetra que a atendeu relata ameaças no trabalho:

— Grande parte dos profissionais confunde o papel da assistência médica com o do investigador. Não cabe ao médico julgar se a paciente está falando a verdade.

O Ministério da Saúde informou que vítimas de estupro podem buscar atendimento em qualquer um dos estabelecimentos públicos de saúde que possuam serviços de obstetrícia. Se houver dificuldade, o gestor deve garantir que o procedimento seja realizado por outro profissional ou outro serviço.

CRIMINALIZAÇÃO ATINGE MULHERES NEGRAS

Um levantamento recente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro traçou um perfil das mulheres que respondem a processo criminal pela prática de aborto fora das exceções previstas em lei, como o estupro. Em sua maioria, são jovens (entre 22 e 25 anos), negras, mães, pobres e sem antecedentes criminais. Essa foi a conclusão da análise de 42 casos de mulheres que respondem criminalmente por terem abortado, sozinhas ou com ajuda de terceiros, no estado.

A Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria levantou processos em tramitação no Tribunal de Justiça do Rio entre 2005 a 2017. Os casos foram divididos em dois grupos. No primeiro, estavam 20 mulheres que praticaram aborto sozinhas, em casa, ou com a ajuda de uma terceira pessoa. Um exemplo é o caso da cozinheira Ana (nome fictício), de 33 anos. Mãe solteira de dois filhos, de 13 e 7 anos, ela foi ameaçada de ser expulsa de casa pelo próprio pai caso levasse a terceira gravidez adiante. Ela então encomendou quatro comprimidos de um remédio abortivo. Quase perdeu a vida devido a uma grave hemorragia. Acabou respondendo a um processo depois de buscar socorro médico.

O outro grupo é composto por processos em que ocorreu investigação policial de clínicas clandestinas que praticavam aborto. Nesse caso, além dos funcionários envolvidos, algumas mulheres que realizavam o procedimento também foram processadas.

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