Um caso envolvendo um professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), em Florianópolis, acusado por alunas de assédio sexual, causou polêmica na semana passada. Pelo menos dez estudantes denunciaram o docente por condutas de conotação sexual que teriam sido praticadas por ele durante orientações de pesquisa, em seu gabinete, a portas fechadas.
(O Correio do Povo, 12/06/2018 – acesse no site de origem)
Entre os depoimentos das vítimas que tiveram coragem de registrar boletim de ocorrência na Delegacia de Proteção à Mulher, Criança, Adolescente e Idoso (Dpcami) da Capital, há relatos de intimidação verbal e toques abusivos.
Após concluir o inquérito, o delegado Paulo de Deus entendeu que o caso do professor da Udesc não se tratou de assédio sexual, mas de perturbação da tranquilidade, previsto no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais.
“Eu pessoalmente acho que não tem diferença (entre professor e aluno ou chefe e subordinada), mas não é o que a legislação entende. O fato de elas serem bolsistas, não tira o caráter pedagógico (entre professor e aluna). Mas é uma discussão que vira legislativa”, disse à reportagem na última quinta-feira.
Só que a interpretação do delegado causou indignação entre as vítimas, que voltaram a cobrir as paredes da universidade com mensagens de protesto. O professor, afastado por força de um atestado de saúde, deve retornar às atividades no dia 16. Uma sindicância interna também investiga a conduta dele. O mesmo professor responde a outro inquérito por estupro em Palhoça. O nome do docente não foi divulgado pela polícia e nem pela universidade.
“É extremamente perturbador saber que eu posso ser assediada dentro da universidade e que nada irá acontecer com o agressor. Eu me expus, estou sofrendo com as consequências psicológicas, estou com depressão. Mesmo assim, o que passei não caracteriza assédio? Ter a mão de um professor em baixo da minha blusa não é suficiente?”, questionou uma das vítimas.
Afinal, o que caracteriza crime de assédio sexual?
Para entender as questões técnicas do direito sobre esse tipo de crime, a reportagem ouviu três especialistas no tema: a promotora de Justiça Silvia Chakian, que é coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo; a juíza Teresa Cristina Cabral, que atua em Santo André (SP) e integra a coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário de São Paulo; e a delegada Tânia Harada, que atuou na Dpcami de Joinville e exerce a função de delegada regional do Norte de Santa Catarina.
A promotora Silvia Chakian lembra que o termo assédio sexual se popularizou e acabou sendo utilizado para todo tipo de comportamento inadequado, o que, na avaliação dela, trouxe visibilidade para um problema social que é naturalizado culturalmente.
“Até pouco tempo atrás ninguém se importava em falar sobre isso, como se fosse natural você sair na rua e ser chamada de “vaca”, “piranha” ou “gostosa”, ou o sujeito passar a mão em você dentro do transporte público como se estivesse tudo bem. De um tempo pra cá, o assédio começou a ser visibilizado”, avaliou.
No entanto, a especialista destaca que a única violência que se enquadra no tipo penal “assédio sexual”, previsto no artigo 216 A do Código Penal, é quando a circunstância envolve hierarquia e a condição de ascendência do agressor para obter vantagem sexual.
As três especialistas ouvidas pela reportagem não conhecem o caso da Udesc e não tiveram acesso aos autos do inquérito. Por isso, vale destacar que a opinião delas não é pontual, mas geral sobre o tema. Ambas as entrevistadas concordaram que os casos de intimidação sexual envolvendo professor e aluno podem ser enquadrados como “assédio sexual”.
“A análise que tem que ser feita é qual a posição entre o assediador e a vítima. Eventual negativa da vítima a essa investida representa uma ameaça, no caso da aluna, às suas notas, ao seu desempenho escolar, à sua manutenção na escola. Na relação entre subordinado e chefe, a ameaça diz respeito à própria subsistência no emprego”, disse Silvia Chakian.
“A lei diz que sempre que houver uma situação de ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função é assédio sexual. A situação de professor e aluna, na minha percepção, se encaixa perfeitamente nessa condição”, concordou a juíza Teresa Cristina.
“Tem que haver alguma relação de autoridade e poder sobre a vítima para caracterizar assédio, eu entendo que na relação entre professor e aluno isso existe. Inclusive, há decisão do TJSC nesse sentido”, completou a delegada Tânia Harada.
E quando não existe hierarquia, qual é o crime?
Quando o assédio ocorre entre pares, ou seja, não há uma condição de ascendência, ou é praticado por um desconhecido na rua, há outros tipos penais que podem ser empregados para responsabilizar o agressor. A promotora Silvia Chakian cita alguns exemplos:
- Comportamento sexual ou sensual indevido e não desejado pode configurar eventualmente uma contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor. Toda vez que a abordagem for grosseira, humilhante e intimidadora, acompanhada ou não de toques íntimos. Passada de mão como acontece muito no carnaval ou no transporte público, são alguns exemplos. Eu entendo que até a cantada grosseira e humilhante que intimida, pode configurar essa contravenção. (Art. 61 da LCP – leia abaixo).
- O comportamento indevido também pode configurar o crime de ato obsceno, toda vez que envolver a utilização de gesto ou prática de ato de conotação sexual indesejado. Mas, neste caso, a situação deve ter ocorrido em local público ou aberto ao público. (Art. 233 da LCP – leia abaixo).
- Outras situações podem caracterizar crimes mais graves. Um deles é o estupro. Toda vez em que há contato físico indesejado com a vítima, com toques íntimos mais invasivos, ou que abranjam atos sexuais indesejados, pode configurar esse tipo criminal. Entendo que aquele caso do ejaculador do ônibus em SP seria estupro. É um toque mais invasivo, não é só uma passada de mão. (Art 213 do CP – leia abaixo).
As especialistas destacam que o assédio ou as condutas sexuais indevidas, que fazem principalmente as mulheres como vítimas, é um problema cultural e não dependem só da legislação, mas do envolvimento de toda a sociedade para promover mudanças.
“Estamos falando de um tipo de violência com causas sociais muito relacionadas ao aspecto da nossa cultura patriarcal. A transformação virá a partir de uma mudança de postura e do inconsciente no trato da questão da violência contra a mulher, de enxergar a mulher como sujeito de direito, cujo corpo não é público”, reforçou Chakian.
A juíza Teresa Cristina lembra que o tipo penal “assédio sexual” não é tão novo assim, pois foi criado há 16 anos. Mas enfatiza que a violência de gênero ainda não é reconhecida pelas pessoas como um problema. Justamente por essas questões culturais é que a magistrada destaca a importância de se levar a denúncia adiante.
“A gente leva muito para a área penal e não pensa em responsabilização de uma maneira ampla. De repente, para um professor como esse, ser punido administrativamente talvez tenha até mais efeito do que criminalmente. Temos que olhar para outras esferas do direito também”, disse Teresa.
Na percepção da delegada Tânia Harada, as penas para os crimes de gênero ainda são muito brandas se comparadas aos prejuízos psicológicos causados às vítimas.
“Acho a pena muito baixa. Nesse caso (de assédio), deveria superar os dois anos para não ser enquadrado no delito de menor potencial ofensivo. É algo extremamente constrangedor para a mulher. Você já deve ter passado por isso, eu já passei. A gente sabe o transtorno e constrangimento que isso causa para a mulher”, opinou Tânia.
Confira os tipos penais citados na reportagem
- Art. 216 A do Código Penal – Assédio Sexual: Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena: detenção, de 1 a 2 anos. A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 anos.
- Art. 61 da Lei de Contravenção Penal: Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor. Pena: multa de duzentos mil réis a dois contos de réis.
- Art. 233 da Lei de Contravenções Penais: Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena: detenção de três meses a um ano, ou multa.
- Art. 213 do Código Penal: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena: reclusão de 6 a 10 anos. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos a pena de reclusão é de 8 a 12 anos. Se da conduta resulta morte a pena de reclusão passa de 12 a 30 anos.