“Essa mulher grávida de um feto anencefálico não sairia da maternidade com um berço. Sairia com um pequeno caixão”, afirmou Luís Roberto Barroso à época
(HuffPost Brasil, 11/07/2018 – acesse no site de origem)
Risco de vida da mulher e casos de estupro. Esses eram os únicos casos em que o aborto era permitido no Brasil, ambos previstos no Código Penal, em vigor desde 1940. Em 2012, a descriminalização da interrupção da gravidez foi ampliada. Por 8 votos a 2, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu legalizar a antecipação do parto em casos de fetos anencéfalos, por meio da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54.
O tribunal analisa agora a ADPF 442, que pede a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Proposta em março de 2017 pelo PSol em conjunto com o Anis – Instituto de Bioética, o tema da ação será debatido nos dias 3 e 6 de agosto, entre 40 representantes. A lista inclui desde o Ministério da Saúde a movimentos feministas e religiosos, escolhidos pela relatora, ministra Rosa Weber.
As audiências públicas passaram a ser adotadas pelo STF desde o julgamento das células-tronco, em 2007, em julgamentos de temas controversos. No caso dos anencéfalos, participaram 22 instituições divididas entre os grupos religioso, científico e comunitário, nos dias 26, 27 e 28 de agosto de 2008. Iniciado em 2004, o processo que descriminalizou o aborto em casos de anencefalia demorou 8 anos para ser julgado.
A petição inicial apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) invocou princípios como a dignidade da pessoa humana, a autonomia da vontade e o direito à saúde e pediu que os artigos do Código Penal sobre aborto fossem interpretados conforme a Constituição.
O julgamento alterou a interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, referentes à interrupção da gravidez pela própria gestante, com consentimento dela e nos chamados “abortos necessários”, que envolvem questões de saúde. Até então, as decisões judiciais se dividiam entre as que permitiam e as que não autorizavam a antecipação do parto de fetos anencéfalos.
Atual ministro do STF, Luís Roberto Barroso atuou no processo como advogado da CNTS. “Essa mulher grávida de um feto anencefálico não sairia da maternidade com um berço. Sairia com um pequeno caixão”, afirmou no plenário, à época. De acordo com ele, a decisão era sobre o direito que a mulher tem de não ser um útero a serviço da sociedade.
Barroso sustentou que o feto anencéfalo não terá vida e, portanto, a interrupção dessa gravidez não seria crime. Também destacou que, de acordo com o Direito Brasileiro, a vida tem fim quando o cérebro para de funcionar.
Então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defendeu a legalidade da interrupção da gestação. Esse foi o mesmo entendimento de sua antecessora, Deborah Duprat, mas contrário ao do procurador-geral anterior, Claudio Lemos Fonteles.
O contexto do julgamento do aborto em caso de anencefalia
Antes do julgamento do mérito da ADPF 54, o relator, ministro Marco Aurélio Mello concedeu, Em 1º de julho de 2004, uma decisão provisória em que suspendia a criminalização da interrupção da gravidez de fetos com esse tipo de má formação, mas em 20 de outubro do mesmo ano, o plenário do STF teve outro entendimento e a decisão liminar foi revogada.
Os votos dos ministros mudaram imediatamente a vida de Severina Ferreira, que estava internada em um hospital do Recife com um feto sem cérebro dentro da barriga. No dia seguinte, ela começaria o processo de interrupção da gestação. A história é retratada no documentário Uma História Severina, produção da antropóloga Debora Diniz, pesquisadora no Anis, com a jornalista Eliane Brum.
Sem a liminar de Marco Aurélio Mello, a moradora de Chã Grande, no interior pernambucano, começou a peregrinação por uma decisão judicial. Severina e o marido Rosivaldo, lavradores de brócolis em terra emprestada, passaram 3 meses de obstáculos burocráticos até conseguirem autorização judicial. No hospital, teve de enfrentar ainda a recusa de anestesistas de plantão em participar do procedimento.
Enfim, a decisão do STF sobre anencéfalos
No julgamento em 2012, o STF considerou inconstitucional interpretar que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo possa ser enquadrada no Código Penal porque violaria preceitos constitucionais como a garantia do Estado laico, da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e da proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.
Na prática, o tribunal deu às mulheres o direito de interromper a gestação nos casos em que essa má formação fosse diagnosticada, sem autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado.
Os ministros Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello votaram a favor da descriminalização. Ricardo Lewandowski e o presidente da corte, ministro Cezar Peluso, votaram contra a liberação.
Lewandowski defendeu que não caberia ao Judiciário a Decisão. Já Peluso entendeu que seria uma violação ao direito do feto à vida. “Essa forma de discriminação em nada difere, a meu ver, do racismo e do sexismo e do chamado especismo. Todos esses casos retratam a absurda defesa em absolvição da superioridade de alguns, em regra brancos de estirpe ariana, homens e ser humanos, sobre outros, negros, judeus, mulheres, e animais”, afirmou o magistrado à época.
O ministro Dias Toffoli se declarou impedido de participar do julgamento por ter participado do processo quando era advogado-geral da União e ter emitido parecer a favor da legalidade da interrupção da gravidez nesses casos.
“O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura.”
Ministro Marco Aurélio Mello, à época da decisão.
Desde o início o relator esclareceu que não se tratava de descriminalização do aborto, mas de antecipação terapêutica do parto e que no caso do anencéfalo não se trata de vida em potencial. “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida”, afirmou Marco Aurélio Mello. De acordo com essa interpretação, não haveria um conflito de fato entre os direitos das mulheres e o direito à vida.
Sobre os direitos reprodutivos, o STF entendeu como tortura o Estado impor à mulher a obrigação de prosseguir com a gestação nesse caso, “em espécie de cárcere privado de seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade”.
Em que consiste a anencefalia (e o entendimento do STF)
A anencefalia é uma má-formação congênita letal, pois não haveria possibilidade de desenvolvimento de massa encefálica em momento posterior, de modo que seria inviável a vida fora do útero. “Anencéfalo não teria vida em potencial, de sorte que não se poderia cogitar de aborto eugênico”, afirmou Marco Aurélio Mello. Ele ressaltou que seria diferente em casos de deficiência que em a vida extrauterina é viável.
A anomalia acontece no tubo neural, que dá origem ao cérebro e à medula espinhal, a partir do 21º e o 26 dia de gestação. Em geral, o diagnóstico se dá por meio de um exame de ultrassom, a partir de 12 semanas de gravidez.
No julgamento da ADPF, ficou destacado que é consenso na Medicina o falecimento é diagnosticado pela morte cerebral, a exemplo da Resolução 1.752/2004 do CFM (Conselho Federal de Medicina), que considera os anencéfalos natimortos cerebrais.
Sobre o caso de uma suposta portadora de anencefalia que teria sobrevivido por um 1 ano e 8 meses, citado no processo, o relator afirmou que o diagnóstico estaria equivocado, de acordo com especialistas e que se tratava de um caso de meroencefalia, quando o feto tem partes do cérebro que viabilizariam, embora precariamente, a vida extrauterina.
Em 2012, famílias com casos semelhantes acompanharam a sessão no STF. “A Medicina não é 2 + 2 = 4 sempre. Ela não é um vegetal. Não é uma coisa. É um ser humano com sentimentos. Responde ao amor, responde à dor”, afirmou Joana Croxato, mãe de uma criança com 2 anos na época diagnosticada com anencefalia.
Ao julgar a interrupção da gravidez de anencéfalos, Mello afirmou que a locução “sob a proteção de Deus”, constante no preâmbulo da Constituição, não seria norma jurídica e que o Estado laico era neutro, nem religioso nem ateu, e que preservava a liberdade de crença de cada indivíduo.
De acordo com o relator, para se tornarem aceitáveis no debate jurídico, os argumentos dos grupos religiosos deveriam ser devidamente “traduzidos” em termos de razões públicas, de forma que a adesão a eles fosse independente de qualquer crença.
Mello afirmou, contudo, que a participação de instituições religiosas nas audiência públicas teve como objetivo incluir atores da sociedade na interpretação da Constituição, de maneira democrática.
No início do julgamento, em 11 de abril de 2012, as manifestações em frente ao STF foram diversas, com religiosos carregando cartazes, terços e uma santa. A cantora Elba Ramalho foi uma das ativistas contrárias à interrupção da gravidez. “Todo mundo tem direito à vida. Todo mundo tem direito igual”, afirmou, à época.
O padre Rafael Fornasier, da Comissão Vida e Família da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), por sua vez, questionou possíveis desdobramentos da descriminalização do aborto de fetos com má formação. “É melhor que dê o enterro digno do que mate seu filho”, afirmou.
A CNBB também está na lista de participantes da audiência públicas sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação no dia 6 de agosto. Outras entidades religiosas que estarão presentes são a Associação dos Juristas Evangélicos e o movimento Católicas pelo direito de decidir.