Rilma Hemetério tem a missão de pacificar corte após a reforma da CLT
(Folha de S.Paulo, 19/08/2018 – acesse no site de origem)
“A menina do balcão está sentada na mesa de audiência?” A pergunta feita em tom de estranhamento foi ouvida inúmeras vezes por Rilma Aparecida Hemetério ao assumir, como juíza, a 16ª Vara do Trabalho, em São Paulo, em 1981.
Tinha 28 anos e, apenas cinco anos antes, era mesmo Rilma quem recebia e arquivava os processos da vara em que se tornaria juíza.
No próximo dia 1º de outubro, a menina do balcão se tornará a primeira mulher negra a presidir o maior TRT (Tribunal Regional do Trabalho) do país —o tribunal da 2ª Região, que engloba a capital paulista, Guarulhos, Osasco, região do ABC e a Baixada Santista.
A desembargadora foi eleita em um momento em que uma extensa reforma promete trazer mudanças profundas no mercado de trabalho.
Para a futura presidente do TRT-2, as regras são uma realidade que precisa ser observada. Reconhece, no entanto, que há aspectos da reforma que afrontam a Constituição, cujos capítulos que tratam dos direitos sociais se referem basicamente ao direito dos trabalhadores.
“Condições insalubres ou anti-higiênicas podem ser negociadas?”, pergunta.
“Não podemos opor o que está contido na reforma com o que traz a Constituição.”
Filha de uma dona de casa e um artesão proprietário de uma pequena sapataria em Caxambu, no sul de Minas Gerais, Rilma veio a São Paulo pela primeira vez em 1967.
Ao passar na frente da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no largo São Francisco, disse à mãe que estudaria lá. “Você tem mania de grandeza”, ouviu.
Quando chegou a hora de prestar o vestibular, teve de escolher entre a inscrição e uma pequena viagem com as colegas de formatura do normal —o curso de formação para dar aulas no ensino básico da época.
Pediu à freira que devolvesse o dinheiro da formatura e pegou o ônibus para São Paulo. Entrou na USP em 1971.
Instalada na casa de um tio, em Osasco, foi bancária e estagiária da Prefeitura de São Paulo e de um escritório de advocacia, além de atendente judiciária, uma forma de se aproximar de sua paixão, a Justiça do Trabalho.
O pai não tinha o diploma primário, mas não cansava de repetir que a única forma de progredir era estudando.
“Doente, ele fez minha mãe prometer que jamais deixaria a mim e meus dois irmãos sem estudo”, conta. O pai morreu em 1966, sem ter a chance de ver que a promessa foi cumprida à risca.
A família é uma mistura de negros, índios e judeus. Embora não existam documentos, Rilma diz que a bisavó paterna foi da Bahia para Minas na condição de escrava.
O bisavô tinha sobrenome espanhol, mas não o transmitiu ao avô. Rilma, portanto, desconhece a origem do Hemetério. “Só sei que não é da Casa Grande”, diz, sorrindo.
O avô foi vereador de Caxambu e, embora gago, era um grande comunicador.
Foi com ele que Rilma aprendeu a lidar com alguns constrangimentos. Quando entrou na USP, algumas famílias tradicionais de Caxambu perguntavam a conhecidos em tom de galhofa: “Ela entrou pela porta da frente e saiu pela de trás?”.
“Para eles, era uma afronta que a filha do sapateiro, a neta do negro gago, tivesse entrado na universidade”, diz.
Rilma não se intimidou. “Sempre tive muita determinação”, diz, embora reconheça que a situação social atrelada à condição étnica tenha um peso gigante na equação da vida.
“No meu entorno, nunca encontrei meus iguais. Sempre faço o teste do pescoço e não tem jeito, não vejo ninguém como eu”, diz ela.
Pragmática, Rilma entrou para o Ministério Público, mesmo com a certeza de que a área criminal não fazia parte de seus planos no longo prazo.
Atuou como promotora em Minas Gerais por um pouco mais de um ano, até abrir o concurso para magistratura do Trabalho em São Paulo.
“Aprendi comigo mesma que você é quem diz o que você é. Tudo o que fiz, fiz uma única vez: vestibular, concurso para o Ministério Público e para a Justiça do Trabalho. Embora isso possa parecer arrogância, não é. Se você quer alguma coisa, tem de focar.”
Questionada se achava que, além de decidida, seria também dura, Rilma dá risada do estereótipo.
Em 2014, ela esteve à frente da tentativa de conciliação entre Metrô e o sindicato da categoria, em greve por reajuste.
Em rede nacional, deu bronca nos metroviários por descumprirem a sua ordem de manter 100% da frota em circulação em horário de pico.
“Não acho que tenha sido dura. No caso do Metrô, eles falavam em greve com catraca livre, mas isso não adianta porque a empresa é pública. Além de sermos prejudicados, porque andamos de metrô, ainda teríamos prejuízo porque não entraria dinheiro na empresa”, afirma.
Questionada sobre como vai encarar novos embates criados pela reforma trabalhista, Rilma diz que, em algumas situações, será preciso observar o caso concreto, pelo menos até que o STF (Supremo Tribunal Federal) se pronuncie.
No caso mais emblemático, o da permissão dada à lactante para trabalhar em lugares insalubres, a desembargadora diz que uma médica gestante trabalhando em um hospital é diferente de uma frentista.
Um segundo ponto de atenção é o pagamento de honorários ao advogado da parte vencedora de um processo ou do perito pelo empregado que perde a ação.
“Isso também está sendo questionado porque faz com que o trabalhador não se sinta seguro de entrar com ação quando, por exemplo, trabalha em condição insalubre.”
Ela pondera, porém, que a garantia do acesso amplo à Justiça é constitucional e, nesse sentido, será preciso aguardar a posição do STF.
Rilma chama a atenção para a possibilidade de negociação do intervalo de refeição.
“Muitos dizem que é benéfico ter 30 minutos porque abre espaço para ir para casa antes. Estão falando de onde? São Paulo? Tem lugar que o trabalhador vai comer em casa e vai caminhando. Por enquanto, está tudo em aberto”, diz.
E não seria contraditório abrir espaço para a negociação e, ao mesmo tempo, colocar fim à contribuição sindical obrigatória? “Sempre fui contra a obrigatoriedade. Há países em que sindicatos podem ser criados por empresas, setores, ou região, e cada um decide o que quer do seu sindicato. Esse é o sistema ideal.”
Por enquanto, é preciso aplicar a lei da forma que está na regra, mas pondera: “Eu prometi que cumpriria a lei. Mas a lei tem de fazer Justiça”.
Rilma Aparecida Hemetério, 65
Formada em direito pela USP (Universidade de São Paulo), tem especialização em Direito do Trabalho e Previdência Social e é mestre pela Universitá Degli Studi di Roma, na Itália
Passou pelo Ministério Público de Minas e deu aulas na Unicor (Universidade de Três Corações)
É desembargadora federal do Trabalho desde maio de 2001
Flávia Lima