Que seja de todas as mulheres o direito de poder demonstrar suas habilidades
(Folha de S.Paulo, 08/06/2019 – acesse no site de origem)
Hoje é dia de reverenciar as mulheres de uma seleção brasileira. Aquelas que ainda me fazem ter algum prazer em falar, ver ou discutir sobre o futebol. Que fazem esse esporte ter a beleza da competição que um dia pareceu ser um espetáculo em pés masculinos.
Proibidas de jogar por lei, desafiaram tudo e todos pelo direito de fazer acontecer nos mesmos campos nos quais os homens reinaram soberanos. Mais que jogadoras, foram guerreiras. Enfrentaram todo tipo de preconceito, ndiscriminação e agressão pelo prazer de jogar um jogo que demorou quase cem anos para ser considerado também de mulheres.
Consideradas usurpadoras, enfrentaram diferentes argumentos sociais e familiares para hoje se firmarem como atletas. O esporte de menino foi invadido por meninas corajosas que impuseram seu desejo e foram em busca de um sonho. Enfrentaram com os pés e o coração determinações de quem pouco conhecia o esporte, mas detinha a mão que sustentava uma caneta que escreveu, assinou e determinou os rumos de uma prática esportiva apenas para varões. Sem evidências concretas que sustentasse essa proibição, coube às “infratoras” praticar clandestinamente o futebol, o que, naquele momento, era apenas uma paixão. Nossa reverência a essas contestadoras!
Mulheres dibradoras. Quem diria que elas conquistariam a oportunidade de ter uma Copa do Mundo só delas, que ganhariam transmissão ao vivo e cobertura in loco por mulheres jornalistas, outra conquista inquestionável. Enfim, era inimaginável que teriam visibilidade e fossem tratadas com o respeito que toda atleta merece ter, independentemente da modalidade que pratica. Assim é o tempo. Assim é a memória da qual retiramos feitos e fatos para não serem esquecidos.
Cansadas de ouvir gracinhas e impropérios, viraram o jogo e hoje se mostram poderosas. Adeus ao apupo: jogue como um homem. Meninas e mulheres podem agora, mais do que nunca, falar e ouvir em caixa alta e letras de forma: JOGUE COMO UMA MENINA!
Passado o tempo em que o modelo de jogo e habilidade era o outro, elas passaram a ser a referência para as gerações futuras. O desejo de vir a ser se firma no presente em pessoas como Marta, Cristiane, Formiga, que também já tiveram as pioneiras Acre, Didi, Elane, Fanta, Katia Cilene, Marcia Tafarel, Maravilha, Marisa, Meg, Michael Jackson, Monica, Nenê, Pretinha, Raquel, Roseli de Belo, Sissi, Suzana, Suzy, Tânia Maranhão, que foram a mundiais que ainda não eram Copa do Mundo. Que não tinham referência de jogo de mulheres e tiveram que inventar a si mesmas para o futebol feminino seguir em frente, alterando o artigo definido masculino o para o feminino A para uma jogadora e contemplar Andressinha e Ludmilla, ídolos dessa nossa geração.
Se hoje há no elenco a melhor jogadora do mundo, a única a ser escolhida para essa posição nada mais, nada menos do que seis vezes, é porque antes dela vieram outras que abriram um caminho onde ele não existia.
Se o futebol se confunde nessa terra com a própria identidade nacional, então que comece o espetáculo! Chega de jogo escondido. Adeus à necessidade de treinar com meninos por falta de times de meninas. Que seja de todas as mulheres, que assim o desejam, o direito de poder demonstrar suas habilidades. Que times e campeonatos sejam organizados para que toda a cadeia produtiva, das categorias de base ao profissional, tenha seleções estruturadas e calendários produtivos.
Salve, salve todas as que hoje estão na seleção e que mantêm viva a missão de ter a estranha mania de ter fé na vida.
Katia Rubio é professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiros”