Morte. Prisão. Os riscos que correm as mulheres que sofrem um aborto incompleto

30 de setembro, 2019

No Brasil, o aborto é a quinta causa de mortalidade materna; 28 de setembro é Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe

(O Globo, 28/09/2019 – acesse no site de origem)

A.P.L.*, de 19 anos, estava no trabalho quando sentiu dores abdominais, fortes como “se algo saísse de dentro” de si. No hospital, descobriu que tinha passado por um aborto espontâneo e que estava presa em flagrante. Um policial declarou que a tinha ouvido falar que sofrera um aborto. A.P.L. afirmou não saber que estava grávida , e a equipe médica disse não ter elementos que pudessem comprovar se o aborto pelo qual a jovem passou era espontâneo ou provocado.

A.P.L. é uma das personagens no documento “30 habeas corpus: a vida e o processo de mulheres acusadas da prática de aborto em São Paulo”, relatório feito pelo Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O documento relata os casos de mulheres acusadas de praticar aborto, das quais apenas metade apresentavam provas concretas de o terem provocado, de acordo com a definição de prática abortiva que consta no artigo 124 do Código Penal.

Dos casos apresentados pelo Nudem, 17 foram denunciados pelos profissionais dos hospitais procurados por essas mulheres; 20 não apresentavam prova de materialidade do crime de aborto; em 21 houve quebra de sigilo médico   — 70% do total de processos analisados.

A.P.L teve um aborto incompleto, precisou de ajuda médica e acabou presa. mas há situações ainda mais graves que a dela. Abortos feitos sem condições mínimas de saúde e higiene são a quarta causa de mortalidade materna no Brasil. É para evitar situações como essas que, em 1990, o Quinto Congresso Feminista Latino-Americano e Caribenho escolheu o dia 28 de setembro como Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. 

Você sabe o que é um aborto incompleto?

O aborto sofrido por A.P.L* é chamado de incompleto ou retido. Provocado ou instantâneo, ele acontece quando há interrupção do desenvolvimento do feto, mas o corpo da mulher não consegue expelir sozinho todos os seus restos. Nesses casos, é recomendada a aspiração manual intrauterina ou a curetagem para sugar o que ainda ficou dentro do útero.

De acordo com a médica Lelia Adesse, membro do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA) e coordenadora da área técnica de saúde das mulheres da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, muitas mulheres que passam por um aborto incompleto deixam de procurar ajuda médica devido ao medo de serem denunciadas dentro dos próprios hospitais, como aconteceu com A.P.L.

Sem ajuda médica, a mulher na situação de um aborto incompleto pode ter uma hemorragia que coloca em risco a sua vida.

— Ninguém quer passar por uma situação dessas, mas uma lei de 1940 inibe um acompanhamento digno pelos profissionais de saúde. Não inibe os abortos nem as complicações, mas afasta as mulheres de onde elas deveriam estar: o serviço público de saúde — afirma a médica.

A defensora pública e coordenadora do Nudem, Paula Sant’Anna, ressalta que o hospital deve ser um espaço de acolhimento, não de leis:

— O hospital é um espaço de acolhimento mas, no cenário brasileiro, não há esse olhar de cuidado, sigilo e proteção — explica.

A médica Leila afirma que, pela lei, é direito da mulher ter atendimento médico sigiloso do profissional que a atende, independentemente de estar sofrendo um aborto provocado.

— Há uma cultura de punição, de crítica e de discriminação. A mulher não é tratada como um caso de saúde, mas como um caso fora da lei — completa.

Segundo dados do Ministério da Saúde, a cada 1 milhão de abortos realizados no Brasil, 250 mil terminam na hospitalização de mulheres. A médica Lelia Adesse explica que as mulheres recorrem a todos os métodos a seu alcance: veneno de rato, maconha, permanganato de potássio, combinações de remédios, maconha, objetos pontudos como canetas, varetas de bambu, cabides etc. Ainda segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, uma mulher morre a cada dois dias por aborto inseguro.

Lelia explica que mulheres com situação econômica privilegiada conseguem acesso a clínicas privadas e a métodos abortivos mais seguros e recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como o cytotec. Outras conseguem até mesmo realizar o procedimento em um país onde o aborto é legalizado .

Dados da Nudem reforçam o argumento da médica. Das 30 mulheres atendidadas pela Defensoria, todas tinham renda fixa entre R$ 600 e R$ 900, com exceção de uma que recebia R$ 2.500. As fianças, quando fixadas pelas autoridades policiais, estavam entre R$ 724 e R$ 3.000. A.P.L., que recebia R$ 800, teve que pagar uma fiança de R$ 1.500.

Segundo a defensora pública Paula Sant’Anna, muitas das mulheres que passam por esse tipo de situação não sabem que podem recorrer judicialmente pela quebra de sigilo médico. Além de voltar a tocar em um assunto que a maior parte delas tem dificuldade de falar sobre, existe toda uma questão de ouvir novamente um não do sistema judicial.

— Essa situação repercute bastante na vida da mulher. Uma sentença negativa pode ser uma nova violência para ela — explica Paula.

*A identidade da entrevistada foi mantida em sigilo para preservar sua segurança

Por Audryn Karolyne

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