Em São Paulo, número de boletins de ocorrência registrados por elas nos meses de março e abril despencou; para especialistas ouvidos por CELINA, queda não indica redução da violência e sim maior dificuldade em registrar denúncias
(Leda Antunes/Celina/O Globo) O aumento da violência doméstica durante a pandemia do novo coronavírus também atinge as mulheres com deficiência.Porém, uma queda expressiva no números de denúncias registradas no estado de São Paulo no período pode indicar que elas estão enfrentando maiores dificuldades para pedir ajuda e reportar situações de abuso às autoridades.
Somente 148 boletins de ocorrência de violência doméstica foram registrados por mulheres com deficiência em abril deste ano. Outros 348 foram registrados em março. Os números são bem menores que a média mensal de 460 denúncias recebidas ao longo de todo o ano de 2019.
O volume de denúncias nos quatro primeiros meses do ano caiu quase 30% em relação a igual período do ano passado, de acordo com a Base de Dados da Pessoa com Deficiência. Foram 1.939 ocorrências entre janeiro e abril de 2019, contra 1.376 em 2020, das quais 64% foram registradas em janeiro e fevereiro, antes das medidas de isolamento serem adotadas. As informações foram compiladas pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo a pedido da reportagem de CELINA.
— Não acredito que a violência tenha diminuído. Não houve essa mudança de comportamento em tão pouco tempo. De modo geral, vimos que a violência aumentou nesse período. Todo mundo em casa nem sempre dá certo, sabemos disso. Mas a culpa não é da Covid-19 ou da recomendação de isolamento, que é necessária, mas do agressor — afirma Célia Leão, secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de SP.
Para ela, a queda nos números reflete uma maior dificuldade das mulheres com deficiência saírem de casa para denunciar.
— Tudo é muito perigoso. As pessoas estão mais receosas de pegar transporte público, de se expor ao vírus. E as mulheres com deficiência tem uma dupla vulnerabilidade: pelo gênero e pela deficiência. A deficiência não é incapacitante, mas ela é limitante de alguma forma — explica.
A psicóloga, consultora em saúde e educação sexual e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência Laureane de Lima Costa, afirma que as mulheres com deficiência tem um risco maior de sofrerem mais episódios de violência doméstica e de permanecerem em relacionamentos abusivos. Risco este que se agrava na pandemia:
— As mulheres com deficiência são lidas como incapazes de exercer os papéis que se esperam das mulheres na nossa cultura, que ainda liga as mulheres às atividades domésticas. É uma combinação de sexismo e capacitismo, que produz uma desvalorização das mulheres com deficiência e uma supervalorização de seus companheiros (as), que são percebidos (as) como moralmente superiores por se relacionarem com alguém “assim” — explica a pesquisadora.
Na sua avaliação, isso contribui para minimizar ou até justificar violências cometidas pelo agressor, sobretudo quando quem agride também realiza a mediação das atividades da vida diária, oferecendo cuidado, como se isso compensasse a violência.
— Como não contamos com uma política pública do cuidado no Brasil, focada na promoção da agência das mulheres com deficiência a partir da ética do cuidado, denunciar a violência implicaria perder o cuidado, contribuindo com a permanência em relações violentas — completa.
Barreiras no atendimento
Costa elenca outras barreiras que impedem que mulheres com deficiência peçam ajuda em situações de violência doméstica, como a falta de acessibilidade arquitetônica nas delegacias e no transporte, a falta de intérpretes para garantir a comunicação das mulheres surdas usuárias de libras, a falta de formulários impressos em letras ampliadas, braile ou disponíveis em formato digital para garantir acesso às mulheres cegas ou com baixa visão, além da falta de treinamento para os profissionais de segurança.
Para aprimorar o atendimento a essas mulheres, a Secretaria da Pessoa com Deficiência de SP criou o programa “Todas in-Rede”, que realiza, entre outras ações, um curso de ensino à distância para profissionais das delegacias da mulher e da rede de proteção à mulher do Estado de São Paulo. A primeira edição do curso acontece em agosto e já tem mais de 200 servidores inscritos.
Além de aulas sobre as dinâmicas da violência doméstica, os diversos tipos de deficiência e as melhores práticas no atendimento às mulheres sem revitimizá-las, os profissionais terão acesso a noções básicas de comunicação em Libras (Língua Brasileira de Sinais). O “Todas in-Rede” também reúne em seu site uma série de informações úteis e educativas sobre mulheres com deficiência, inclusive uma lista dos canais de denúncia e acolhimento disponíveis. Todas as informações do portal tem acessibilidade.
O atendimento em libras desde o primeiro momento é um dos diferenciais da 1º Delegacia de Polícia da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, localizada na região central da capital paulista. Além dos intérpretes, a vítima de violência que procura ou é encaminhada para a delegacia especializada conta com acompanhamento multidisciplinar de psicólogos e assistentes sociais desde o registro da ocorrência.
Por lá, a redução nas denúncias de agressões também foi percebida no período da pandemia. Mas, segundo a delegada titular Maria Valéria Novaes Santos, isso não indica uma redução da violência:
— Não deixou de haver a violência, mas ela ficou contida em algum lugar. Vimos que essas vítimas se preservaram mais e não saíram de casa por causa da Covid-19. Talvez ela não tenha condições de pedir ajuda. Mas os serviços continuam funcionando normalmente — afirma a delegada.
Santos explica que as denúncias podem ser feitas por boletim de ocorrência eletrônico, pelo Ligue 180 e que a delegacia também recebe os casos encaminhados pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público — Aí vamos até o local e verificarmos a situação de violência com a equipe de multidisciplinar — explica.
Ela ressalta que em caso de emergência, o 190 pode ser acionado, mas a equipe da delegacia mais próxima será encaminhada até o local. O caso pode ser posteriormente redirecionado para a Delegacia da Pessoa com Deficiência.
A psicóloga Laureane de Lima Costa avalia que em uma situação de confinamento como a que vivemos, a violência doméstica pode se agravar, pois a presença constante dos agressores em casa impede qualquer pedido de ajuda ou comunicação com outras pessoas, até mesmo pelo celular, que pode ser monitorado pelo agressor.
— A pandemia agrava essas situações porque as mulheres com deficiência ficam ainda mais distantes do convívio social, do trabalho, da escola e universidade, do contato com profissionais da saúde, como fisioterapeutas, por exemplo. Apesar desse agravamento, é importante ressaltar que esse período de isolamento social, que o mundo está conhecendo agora, historicamente, é imposto às mulheres com deficiência, por meio das diversas barreiras que obstruem nossa participação plena e em igualdade de condições com as demais pessoas — afirma a pesquisadora.