“O viés religioso não pode servir à precarização de negros, mulheres e outros grupos vulneráveis, como LGBTs”, diz Christina Vital, pesquisadora da UFF.
(HuffPost, 12/11/2019 – acesse no site de origem)
A agenda implementada pela ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, é vista como um risco para grupos considerados mais vulneráveis, como negros, mulheres e pessoas LGBTs. Esta é a avaliação de especialistas em política e religião ouvidas pelo HuffPost Brasil.
Levantamento feito pelo HuffPost, mostrou que nos dez meses de governo de Jair Bolsonaro, a ex-pastora teve reuniões frequentes com religiosos e conservadores, incluindo defensores da cura gay e movimentos contra a legalização doaborto. Bandeiras como o combate ao racismo, por outro lado, perderam a força.
Pesquisadoras ouvidas pela reportagem apontam Damares como uma das responsáveis pela aliança entre católicos e evangélicos que resultou no fortalecimento do discurso contra a chamada “ideologia de gênero”. A retórica ligada à moralidade e contra o “kit gay”, do presidente Jair Bolsonaro, quando ainda era deputado, por sua vez, é tida como fator de aproximação entre ele e parlamentares da bancada evangélica.
A atuação do Executivo é vista como parte do fenômeno de uma ascensão neoconservadora em diversos espaços de poder tanto no Brasil como no mundo. Além das bandeiras ligadas à moral, esse avanço tem se refletido em um fortalecimento institucional de organizações religiosas iniciado antes de Bolsonaro assumir o Palácio do Planalto, por meio de ações como concessões de rádio e TV ligadas a grupos católicos e evangélicos e de recursos do governo para comunidades terapêuticas ligadas a esses setores.
Como parte de sua Política Nacional de Drogas, com o ministro Osmar Terra (Cidadania) à frente, o governo federal decidiu destinar R$ 153,7 milhões para 496 comunidades terapêuticas para dependentes químicos, contratadas sem licitação, em março de 2019. Em 2018, o governo de Michel Temer anunciou a liberação de R$ 90 milhões para o mesmo tipo de iniciativa. Na época, 412 dessas instituições foram selecionadas para receber as verbas.
As comunidades terapêuticas acolhem, de forma voluntária, dependentes de substâncias psicoativas. Elas representam uma alternativa ao tratamento nos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), onde há uma equipe com psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde. Há cerca de 2 mil comunidades, de acordo com levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Desse total, 82% estão vinculadas a igrejas e organizações religiosas, segundo o estudo.
O fortalecimento da bancada evangélica
Pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), a socióloga Christina Vital aponta que as principais conquistas de religiosos na esfera pública nos últimos anos têm ocorrido por medidas como essas, de fortalecimento de instituições católicas ou evangélicas, muito mais do que em temas ligados a direitos humanos, pelo Legislativo.
“Nessas pautas morais apresentadas por esses legisladores cristãos, evangélicos e católicos, o sucesso é pequeno. Nas pautas ocultas, eles têm sucesso. Ocultas da maior parte da população, que não está observando mais diretamente a atuação deles. Quando a gente olha minuciosamente, vê esses sucessos situados, que fortalecem institucionalidades, do que sucessos legislativos”, afirma.
A professora destaca que o Executivo tem poder de estabelecer normas por um trâmite mais ágil que o Congresso. Ela lembra que o Estatuto da Família, por exemplo, não chegou a ser aprovado.
“Até aqui, os evangélicos e católicos tiveram mais sucesso em torno de pautar a agenda pública, de envolver a mídia e a sociedade em certos debates, de levar uma outra narrativa do que aquela que vinha conduzindo as políticas públicas naquele período. Tiveram mais sucesso em pautar a agenda do que um sucesso legislativo. Há uma lacuna entre os que eles efetivamente conseguem e o que eles anunciam como elemento do poder desse coletivo”, destaca.
A professora Maria das Dores Campos Machado, da UFRJ, chama atenção para um deslocamento nessa influência em 2019. Um dos principais nomes conservadores no Legislativo, o deputado Marco Feliciano (Podemos-SP) é um dos mais próximos do presidente Jair Bolsonaro. ”É uma ocupação de espaços para ganhar maior projeção ou interferência no próprio poder Executivo e não no Legislativo propriamente dito”, diz.
Machado também destaca o avanço da presença de religiosos em diferentes organizações profissionais, como a Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos). “Você tem um movimento muito grande nos últimos anos de uma certa ascensão econômica e política desses grupos. É um conjunto de interesses não só morais, de ideias e valores. São interesses que se conjugam, por exemplo, o Edir Macedo se tornou um grande empresário e têm um conglomerado midiático que disputa com a Globo e com o SBT. São interesses que se articulam e são usados por esses setores para ganhar reconhecimento na sociedade”, afirma.
Proprietário do Grupo Record, o bispo Edir Macedo, era um dos 12 integrantes de uma reunião com lideranças religiosa com a ministra Damares em 18 de junho. Entre janeiro e outubro, constam na agenda da ex-pastora ao menos 22 compromissos com religiosos, de acordo com levantamento feito pelo HuffPost Brasil.
A disseminação do termo ‘ideologia de gênero’
De acordo com a professora da UFRJ, Damares foi uma das responsáveis pela aliança com os grupos católicos que propiciou uma apropriação pelos evangélicos do discurso da ideologia de gênero. O termo não é reconhecido no universo acadêmico e é usado por grupos conservadores que se opõem às discussões sobre diversidade sexual e de identidade de gênero. Já a teoria de gênero, reconhecida por estudos acadêmicos, entende que gênero e orientação sexual são construções sociais e, por isso, não podem ser determinadas por fatores biológicos.
Machado destaca o momento de tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional como determinante na difusão dessa expressão que, apesar da origem católica, ganhou força pela forma de atuação dos evangélicos. “Eles conseguem mobilizar os sujeitos para essas campanhas, para sair no meio da rua, para ir a assembleias legislativas, para as votações”, afirma.
Dessa forma, o discurso sobre gênero possibilitou que os evangélicos “fugissem daquela grande acusação de homofobia”, segundo a pesquisadora. “O debate sobre ideologia de gênero torna mais difícil aquela reprimenda. Se tornam mais difíceis de ser combatidos e ao mesmo tempo não estão falando da homossexualidade. Estão falando de gênero. É algo que tirou eles da posição incômoda que estavam, acusados de discurso de ódio”, completa.
Desmonte de políticas públicas
Parte do setor evangélico também apoiou governos petistas, mas na avaliação de Machado, houve um descontentamento desses grupos com políticas como Programa Nacional de Combate à Homofobia e o Plano Nacional de Direitos Humanos, somada a decisões do Judiciário, como o casamento entre pessoas do mesmo gênero, vistas como um “ativismo judicial”.
Em paralelo, ocorre uma aproximação desses setores com Bolsonaro. “Esses processos no campo da orientação sexual geraram um grande descontentamento no grupo evangélico, que foi se deslocando da base política do PT e se aproximando de Jair Bolsonaro. Os evangélicos constituíam o baixo clero no Congresso Nacional, assim como Bolsonaro. Ele teve um papel importante principalmente na questão do kit gay, com um discurso muito acirrado, muito agressivo, ele assumiu também o embate com os movimentos LGBT e isso, de certa forma, foi criando uma ponte extra entre os evangélicos e Bolsonaro”, afirma a professora da UFRJ.
É uma mulher que está à frente do desmonte das políticas de gênero. É muito simbólico. É uma mulher falando de questões de mulheres e de questões de igrejas, lésbicas e tudo mais.Maria das Dores Campos Machado, da UFRJ
O “kit gay” é, na verdade, o material Escola sem Homofobia, elaborado pelo Ministério da Educação no governo de Dilma Rousseff e composto por três vídeos e um guia de orientação aos professores como forma de reconhecer a diversidade sexual entre os jovens e alertar sobre o preconceito.
À frente o Executivo, atores desse neoconservadorismo têm promovido um desmonte das políticas públicas ligadas a minorias, na avaliação de especialistas. Desde o início do ano, o ministério de Damares tem promovido um enfraquecimento de colegiados ligados a direitos humanos, dentre outras medidas.
Combate ao racismo
Christina Vital, pesquisadora da UFF, chama atenção para uma mudança de agenda que estabelece como prioridade o combate ao suicídio, por exemplo, e deixa de lado pautas como o enfrentamento ao racismo, em um país em que 75% das vítimas dos 180 homicídio diários são negras. “A gente viu sumir da pauta do Ministério dos Direitos Humanos o combate à morte da juventude negra. A gente acompanhou sistematicamente a agenda da ministra e, nos primeiros seis meses, essa pauta tinha sido suspensa”, afirma.
Evidentemente que a agenda da mutilação e do suicídio é importante no Brasil e no mundo, mas ela não pode assumir um centralidade quando a gente tem uma questão da juventude, dos moradores de periferia, dos negros no Brasil, que é absolutamente gritante.Christina Vital, da UFF
A pesquisadora destaca que, uma das características do pensamento neoconservador é a afirmação da identidade a partir de uma perspectiva universal que deixa de valorizar essas diferenças. “É como se a afirmação da identidade cristã se desse a despeito da identificação e do reconhecimento dessa diversidade do cristão negro, do cristão LGBT porque também existem pessoas que professam essa fé e são gays, lésbicas, transexuais”, afirma.
Para Vital, da perspectiva religiosa, essa visão pode fazer sentido, mas é incompatível com o processo de elaboração de políticas públicas. “Do ponto de vista da legalidade, a laicidade está sendo mantida. O que a gente tem que discutir é que o viés religioso não pode servir ao vilipêndio público e à precarização de grupos já precarizados por diferentes arranjos sociais. Não podem ser precarizados negros, mulheres, grupos outros vulneráveis, como LGBTs. Políticas públicas devem atender às demandas desses grupos e não reforçar o vilipêndio a partir de valores religiosos que venham a produzir e acentuar desigualdades”, afirma.
No entendimento de Machado, da UFRJ, a atuação do governo Bolsonaro se diferencia das gestões petistas porque as ações direitos humanos implementadas anteriormente não eram pautadas na exclusão. “Em nenhum momento feministas ou LGBTs estavam fazendo políticas que fossem excluir os religiosos. Tem um caráter diferenciador. A política que Damares e Bolsonaro estão implementando é muito baseada na exclusão e na intolerância com relação à diferença. Isso é um perigo muito grande. A Damares fala muito em guerra contra a ideologia de gênero. É um discurso de pouco diálogo com a diferença e de imposição de uma moralidade”, afirma a pesquisadora.
Agenda internacional
Em um alinhamento com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, Damares Alves também tem atuado como protagonista da agenda conservadora no âmbito internacional, inclusive na ONU (Organização das Nações Unidas). “O Brasil sempre teve posição muito respeitada na discussão internacional e estão colocando o Brasil numa posição muito ruim porque está se alinhando com países extremamente autoritários”, critica Maria das Dores Campos Machado.
Diplomatas receberam instruções oficiais do comando do Itamaraty para reiterar o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino. Na Cúpula da Demografia, em Budapeste, Damares anunciou que o Brasil “voltou a ser um país da família” e convocou líderes internacionais a formar uma aliança por esses valores.
A agenda ideológica da ministra inclui encontros com representantes da União Conservadora Americana, responsável por organizar, nos Estados Unidos, a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), e a participação na primeira versão brasileira do evento, em outubro, a convite do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.
A professora da UFF lembra que Damares já atuava nessas redes conservadoras antes de chegar ao poder, mas que agora há uma “integração e visibilidade” desses movimento e que esse grupo passa a ter um capital político e social. “Até décadas atrás ser conservador não era algo público, não se falava sobre isso. Era aquela noção de que a direita era silenciosa e a esquerda era estridente”, lembra Vital.
Sobre a agenda da ministra, ao HuffPost Brasil, o ministério negou que haja incompatibilidade entre a atuação de Damares e o princípio da laicidade do Estado democrático brasileiro. “Apesar de laico, o Estado não é laicista. Ou seja, não há qualquer comando constitucional ou legal que proíba agendas com entidades religiosas, especialmente quando estas tiverem interesse em apoiar ou conhecer as atividades desenvolvidas pela administração pública federal”, diz a nota. O Ministério da Mulher destaca ainda que historicamente as igrejas realizam atividades sociais e, portanto, buscar uma atuação conjunta com o governo é “estratégico”.
Por Marcella Fernandes