(Heloísa Buarque de Almeida/Jornal da USP) “Menina de 11 anos que teve aborto negado no Piauí volta a engravidar por estupro” (Folha de S. Paulo, 10 de setembro de 2022). Sabemos pela matéria que os agressores são parentes – primo e tio. O caso revela uma realidade bem mais comum do que se imagina, infelizmente. A violência de gênero será um dos focos da coluna no Jornal da USP que inicio aqui.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública atualizou os dados recentes sobre violência em seu Anuário de 2022. Os dados sobre o Brasil apontam para cerca de meio milhão de violações por ano. Calcula-se que apenas cerca de 10% dos casos de estupro e estupro de vulnerável (menor de 14 anos) sejam denunciados. Destes efetivamente denunciados, o anuário indica que 75,5% foram estupros de vulneráveis, sendo meninas 88,2% das vítimas. Quando dados sobre agressores estavam disponíveis no registro policial, cerca de 80% são conhecidos da vítima: pais, padrastos, parentes, vizinhos, amigos, conhecidos da família. No caso de estupro de vulnerável, 95,4% dos agressores são homens, 82,5% conhecidos da vítima, sendo 40,8% pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outros parentes e 8,7% os avós.
O caso que vem a público não é raro, portanto. Pretendo destacar aqui dois pontos. Primeiro, é preciso reconhecer que violência sexual é um problema muitas vezes dentro das famílias e entre conhecidos – parentes, vizinhos, amigos, colegas. O perigo não está no desconhecido, apenas. Também pesquisas qualitativas revelam essa situação, demonstrando ainda os efeitos da agressão na vida futura das vítimas (meninas e meninos), para além dos casos de gravidez.
O segundo ponto é a semelhança deste caso com outros que estamparam os jornais em anos recentes. Em meados de 2020, uma menina de 10 anos, vítima de estupro por anos, sendo o agressor seu tio, buscou o aborto legal a que teria direito. Uma juíza internou-a num abrigo, afastando-a de sua mãe, num flagrante caso de violação de direitos humanos. A intervenção da juíza, de religiosos e da ministra Damares Alves visou evitar que a criança tivesse acesso ao direito de interrupção da gravidez. Perversamente, era em nome da “família” que defendiam que a criança se tornasse “mãe”, sem perceber o sofrimento decorrente e o risco ao tentarem obrigá-la a levar a gestação a termo.