Orientação causa reação entre especialistas e grupos de defesa das mulheres
(Folha de S.Paulo, 07/05/2019 – acesse no site de origem)
O Ministério da Saúde emitiu um despacho em que defende abolir de políticas públicas e normas o uso do termo “violência obstétrica”, citado frequentemente para definir casos de violência física ou psicológica praticados contra gestantes na hora do parto.
A medida, que indica uma mudança de posicionamento da pasta, tem gerado reação entre especialistas e grupos de defesa das mulheres.
Nos últimos anos, o debate em torno de casos de violência obstétrica ganhou força no país em meio a campanhas a favor do parto normal e do atendimento humanizado —algumas delas abraçadas pelo próprio Ministério da Saúde.
Texto publicado pela pasta em 2017, por exemplo, já citava a existência do problema. “Você sabe o que é violência obstétrica? Pois saiba que até mesmo muitas vítimas desse tipo de abuso também não. Esse tipo de violência atinge boa parte das mulheres e bebês em todo o país.”
Em seguida, o próprio Ministério da Saúde passava a definir a violência obstétrica como aquela que ocorre na gestação ou parto, podendo ser “física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas”.
Entre os exemplos, estão restringir o direito de acompanhante e ao alívio da dor, impedir que mulher se movimente, beba água ou coma alimentos leves durante o trabalho de parto e realizar episiotomia (corte feito entre a região do ânus e da vagina durante o parto normal) quando não há indicação. Entram na lista também ameaças, piadas ou frases desrespeitosas como “na hora de fazer não reclamou”.
Despacho emitido na última sexta-feira (3), porém, adota outra orientação.
No documento, o ministério diz avaliar que o termo “tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério.”
A justificativa, informa, estaria na definição do termo violência pela Organização Mundial de Saúde, que “associa claramente a intencionalidade com a realização do ato, independentemente do resultado produzido.”
“Percebe-se, desta forma, a impropriedade da expressão ‘violência obstétrica’ no atendimento à mulher, pois acredita-se que tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”, informa.
No despacho, a pasta afirma ainda trabalhar para qualificar o cuidado das mães e diminuir os índices de mortalidade materna e infantil. Por conta disso, defende adotar estratégias para abolir o uso da expressão “com foco na ética e na produção de cuidados em saúde qualificada”.
A divulgação do posicionamento, no entanto, tem gerado polêmica entre especialistas e grupos em defesa das mulheres.
Para a médica Sônia Lanksy, que foi uma das coordenadoras regionais da pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, que entrevistou mais de 23 mil mulheres sobre a assistência ao parto no Brasil, excluir o uso do termo pode soar como uma forma de censura institucional.
Ela lembra que o termo violência obstétrica está consolidado em literatura científica —neste sentido, diz, não haveria como aboli-lo. Alguns países, como Venezuela e Argentina, possuem legislações sobre o tema desde 2007.
“Não há como cercear a liberdade de informação e como as mulheres identificam esse tipo de violência. É um problema de grande relevância em saúde pública. O ideal seria discutir porque esse incômodo tão grande e esclarecer que não é dirigido a ninguém em específico mas à situação da violência obstétrica. É uma violência estrutural”, diz.
Segundo ela, dados da pesquisa dão pistas do tamanho do problema no país.
Um exemplo é que, entre as entrevistadas que tiveram parto normal, 53,5% sofreram episiotomia —enquanto registros na literatura apontam que esse procedimento seria necessário em menos de 10% dos casos. Outras 36% sofreram manobra de Kristeller, pressão no útero para saída do bebê, a qual é contraindicada pelo Ministério da Saúde.
Também foi alto o índice de mulheres sem acesso à presença contínua de acompanhante, assegurada por lei.
Para Débora Diniz, do Instituto Anis Bioética, Direitos Humanos e Gênero, organização que atua em defesa dos direitos das mulheres, o novo posicionamento do ministério representa uma tentativa do governo de negar a existência do problema.
“A retirada dessa palavra de uma política de governo é uma tentativa de silenciar o que acontece nesse momento da vida das mulheres. É o mesmo que ignorar e considerar que isso não existe”, afirma.
Segundo ela, a medida deve trazer impacto às mulheres vítimas desse tipo de violência. “É um documento que tem um impacto simbólico muito importante, de o Estado dizer que não reconhece essa experiência e a forma como você a expressa. É também um sinal de onde estão as prioridades do Ministério da Saúde no cuidado das mulheres”, diz.
Em nota, o Ministério da Saúde diz que o posicionamento foi feito a pedido de entidades médicas e segue pareceres destas entidades.
Um exemplo é um documento do Conselho Federal de Medicina, emitido no ano passado e que passou a recomendar que a expressão não fosse utilizada, por considerar que seu uso “tem se voltado em desfavor da nossa especialidade, impregnada de uma agressividade que beira a histeria, e responsabilizando somente os médicos por todo ato que possa indicar violência ou discriminação contra a mulher.”
À Folha o relator, Ademar Carlos Augusto, diz ter elaborado o documento devido à proliferação de propostas de leis sobre violência obstétrica.
“O que a gente percebe é que existe um movimento orquestrado de algumas instituições de trazer para o médico obstetra a responsabilidade pela situação caótica que está a assistência à gestante”, diz ele, para quem a definição tem “viés ideológico”.
“Essa discussão veio importada de países com viés socialista, e o Brasil também adotou”, diz, em referência às leis da Argentina e Venezuela.
Ainda segundo Silva, além da interpretação pejorativa, há risco de superdimensionar o problema. “Tudo isso são discursos que a gente, quando vai para a prática, [vê que] não correspondem à realidade”, diz ele, para quem os casos estão relacionados não a uma situação específica, mas à desorganização do sistema de saúde como um todo.
Já para Aguinaldo Lopes da Silva, vice-presidente da Febrasgo (federação que reúne associações de ginecologistas e obstetras), é preciso reconhecer que há problemas na assistência às gestantes do país. A adoção de outro termo, diz, seria apenas para deixar de vinculá-los apenas aos obstetras.
“Não negamos que o problema exista. Somos contra qualquer tipo de violência contra a mulher em qualquer situação. A grande questão é atribuir uma relação ao obstetra em situações em que isso ocorra”, diz.
No ano passado, no entanto, a federação publicou um documento que reconhecia o uso do termo.
“Assumir a violência obstétrica como uma realidade a ser enfrentada não enfraquece os obstetras como categoria profissional. Ao contrário, a fortalece, uma vez que os profissionais de saúde também estão expostos a prejuízos oriundos da mesma estrutura que sustenta a institucionalização de práticas violentas contra as mulheres”, dizia o parecer assinado pela presidente da Socego (Associação Cearense de Ginecologia e Obstetrícia), Liduina Albuquerque Rocha de Souza.
“Como médicos obstetras temos uma grande oportunidade em mostrar as mulheres que estamos ao lado delas na busca por uma assistência obstétrica de qualidade.”
Natália Cancian