‘Os preconceitos de gênero podem e devem ser combatidos na escola’

08 de novembro, 2019

Promover esse debate, segundo ela, evita a gravidez na adolescência e suas consequências: evasão escolar, casamento precoce e vulnerabilidade social

(Estadão, 08/11/2019 – acesse no site de origem)

Ministra do governo Fernando Henrique Cardoso, secretária estadual em São Paulo e uma das vozes mais respeitadas quando se fala em educação no País. A professora Claudia Costin garante que um bom sistema educacional incorpora no currículo a discussão sobre gênero, que acabou ficando de fora da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “Os preconceitos de gênero podem e devem ser combatidos na escola”, diz Claudia, que hoje é diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas (Ceipe/FGV).

Promover esse debate, segundo ela, ajudaria a evitar a gravidez na adolescência e suas consequências: evasão escolar, casamento precoce e vulnerabilidade social. “A menina que consegue se manter na escola constrói um caminho profissional que garante autonomia, inclusive financeira”, explica a educadora. “Logo, fica menos sujeita a aceitar uma relação agressiva.”

Claudia vê risco na proposta de unificar os gastos mínimos de saúde e educação, apresentada pelo governo federal no dia 5 de novembro. De acordo com ela, a educação seria a área mais prejudicada. “Ninguém morre de falta de educação. Não imediatamente”, afirma a diretora do Ceipe/FGV. “A gente perde saúde por falta de educação, aumenta taxa de fertilidade da mulher e cria uma série de outros subprodutos que acabam promovendo um menor desenvolvimento.”

Projeto do site Capitu em parceria com o Facebook e o International Center for Journalists, a websérie Deixa Ela discute diferentes aspectos do cotidiano das mulheres na sociedade brasileira. Em nove capítulos, trará entrevistas exclusivas com personalidades como as deputadas Joice Hasselmann e Tabata Amaral, a artista Daniela Mercury e a jogadora Cristiane, entre outras.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Pesquisas mostram que os preconceitos de gênero da sociedade acabam sendo reproduzidos dentro da sala de aula. É papel da escola impedir que isso aconteça?

Os preconceitos de gênero entram na escola de muitas formas. Acontece quando o professor apresenta a sua visão de mundo como sendo uma verdade científica. Ou quando os alunos trazem eventuais preconceitos de casa e o professor se sente inibido de problematizá-los. Os preconceitos de gênero podem e devem ser combatidos na escola. Hoje, existe cuidado inclusive na escolha dos livros didáticos, para verificar se as imagens que estão ali não reproduzem preconceitos existentes na sociedade, como mostrar uma mulher negra aparecendo somente na função de empregada. Os bons sistemas educacionais incorporam essa discussão de gênero em seus currículos. Tanto para discutir os desafios da mulher quanto para se olhar para a diversidade dos gêneros e das identidades de gênero que existam na humanidade. Não apresentar essas questões na sala tira a possibilidade de a
criança entender o que vê nos meios de comunicação e na rua. Contando com a orientação de um adulto responsável, que pode lhe explicar as várias situações. Infelizmente, na discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), esse tipo de discussão e de orientação foi retirado para não constranger determinados grupos religiosos.

Quais seriam os efeitos de essa discussão ser feita na escola?

A grande vantagem de tratar o assunto na escola, de uma maneira mais científica, é poder desarmar preconceitos, permitindo que se viva de forma menos agressiva as relações interpessoais. Tudo o que é diferente causa um certo medo na criança e no adolescente. E o medo, muitas vezes, gera agressividade. Eu acabo me afastando do que não entendo bem – ou mesmo agredindo. Passar o que a ciência diz a respeito de gênero pode ser uma maneira de desarmar a violência e agressividade e construir uma convivência pacífica.

A redução dos índices de gravidez na adolescência também pode ser uma consequência positiva do debate?

Sim. As informações necessárias sobre gravidez na adolescência podem ser repassadas. Algumas famílias têm o preparo necessário e até preferem discutir essas questões. Mas isso não invalida que a escola fale do aparelho reprodutor da mesma maneira que fala do aparelho digestivo. Isso faz parte do currículo de ciências, dar as informações para se evitar gravidez precoce. Quando, no ambiente escolar, se permite que alguns medos e temores sejam verbalizados e possam ser endereçados, até num diálogo de políticas públicas, você prepara essa adolescente para retardar a gravidez ou o casamento. Ambos levam à evasão escolar. E se houver esse abandono, as chances de empregabilidade dessa garota e a possibilidade de ela se realizar no futuro tendem a diminuir.

Há diferença entre a evasão escolar de meninos e meninas?

O menino sai da escola por uma série de razões. Todo mundo desconfia que é para trabalhar. Não, não é. Pesquisas mostram que eles saem porque acham a escola desinteressante. O menino não vê sentido no que está aprendendo ou foi acumulando fragilidades na aprendizagem ao longo da sua escolaridade e, de alguma maneira, chega à conclusão de que ele não foi feito para aprender. Por isso não se pode deixar que o déficit de aprendizagem se acumule. Mas os garotos também saem da escola, especialmente em grandes centros urbanos, porque descobrem muito cedo que podem ganhar uma posição de prestígio se trabalharem para o tráfico ou para grupos de milícia. Ele ganha mais dinheiro e prestígio social. Ele namora as jovens que ele quiser. Com a escolaridade, esse prazer, esse poder é postergado.

E o que ocorre com as meninas?

Temos de olhar para algumas questões sérias, como a gravidez e o casamento precoce. Mas também é necessário dar atenção para algo de que se fala menos: o trabalho de cuidar dos irmãos mais jovens. Quando a mãe sai para trabalhar, muitas meninas mais velhas acabam se dividindo entre a escola e a rotina com os irmãos pequenos. Isso atrapalha muito a vida dela. No pouco tempo que sobra, a garota acaba querendo ter um pouco de vida adolescente.

Há uma correlação entre evasão escolar de meninas e aumento do índice de violência contra a mulher?

A menina que consegue se manter na escola constrói um caminho profissional que garante autonomia, inclusive financeira. Logo, ela fica menos sujeita a aceitar uma relação agressiva, uma relação que a faça sofrer. Infelizmente, por uma questão até de sobrevivência econômica, muitas mulheres no passado tiveram de aguentar um casamento infeliz, um casamento violento ou relações afetivas violentas.

Acabar com a evasão escolar requer uma política pública específica?

Uma política pública importante para evitar que adolescentes abandonem a escola é implantar educação em turno único com sete horas de aula, como praticam os países que têm bons sistemas educacionais. O Brasil, infelizmente, tem aulas de manhã e à tarde. São dois turnos. Ter um turno único com crianças e adolescentes estudando no mesmo horário libera os pais para trabalhar e permite que os adolescentes tenham um aprendizado mais
aprofundado.

A senhora enxerga um projeto consolidado de educação no governo de Jair Bolsonaro (PSL)?

O Brasil teve uma sorte muito grande de ter construído uma Base Nacional Comum Curricular antes desse governo. E a etapa que estamos vivendo hoje é de tradução dessa base em currículos estaduais e municipais. Em um certo sentido, os Estados, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) estão assumindo protagonismo nesse processo de garantir as condições de aprendizado. Assim como o Conselho Nacional de Educação, ao revisar as diretrizes para docência. Considero que nós continuamos trabalhando pelo futuro.

Qual a avaliação da senhora sobre a unificação do piso nos gastos mínimos em saúde e educação, prevista na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Pacto Federativo? Quais as possíveis consequências?

A ideia de descentralizar é positiva. Mas juntar educação e saúde em um pacote só e acabar desvinculando a obrigação constitucional que existe hoje, tanto para a educação quanto para a saúde, é um risco tremendo. Os países que têm bons sistemas educacionais são assim porque enfatizaram a educação mesmo em períodos de crise fiscal. E a educação tem um problema: ninguém morre de falta de educação. Não imediatamente. A gente perde saúde por falta de educação, aumenta taxa de fertilidade da mulher e cria uma série de outros subprodutos que acabam promovendo um menor desenvolvimento. Vários pesquisadores mostram que há uma correlação muito forte entre a qualidade da educação e o crescimento de longo prazo. Ao colocar os dois em um mesmo pacote, como a emergência imediata é da saúde, vai fazer com que os governantes tendam a aumentar o gasto em saúde e diminuir de forma importante os gastos em educação.

A senhora disse que a ideia de descentralizar não é ruim. Por quê? E como poderia ser colocada em prática?

Não é ruim descentralizar o poder decisório em relação a uma série de fatores em educação. Alguma descentralização dos gastos precisa ocorrer, mas é preciso criar um sistema nacional de educação, como existe na saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi uma concepção da Constituição de 1988, que articulou melhor as ações da União, dos Estados e dos municípios em saúde. Nós deveríamos fazer o SUS da educação bem feito, cabendo ao governo um papel de coordenação e articulação.

O MEC anunciou o programa Educação em Prática, cuja proposta é aumentar a nota de universidades particulares que oferecem espaços ociosos para o governo. Alguns especialistas acreditam que a proposta pode mascarar a ineficiência do ensino superior. Qual a opinião da senhora?

Concordo com essa avaliação de que pode mascarar a ineficiência do ensino superior. Eu colocaria algum incentivo nessa direção. Poderia haver duas notas: uma englobando esse tipo de apoio e outra com o desempenho da universidade tanto em ensino quanto em pesquisa. É um incentivo bacana. Com certeza, as engenharias poderiam oferecer o uso de seus laboratórios para o ensino técnico. As faculdades de humanas teriam como permitir o
acesso às suas bibliotecas e a algumas aulas dadas nas universidades. A própria Universidade de São Paulo (USP) desenvolve projetos hoje com o ensino médio e, às vezes, até com o fundamental 2 de escolas públicas. É uma medida positiva que vai ao encontro do que se faz no mundo.

O Abraham Weintraub defende mais liberdade para a atuação das universidades particulares. Como a senhora vê essa possibilidade?

Não concordo com essa ideia. Acho que é muito importante que a gente diga com clareza o que esperamos das faculdades particulares ou públicas. Regulação é papel do Estado. E não vejo motivo para diminuir a regulação sobre as faculdades particulares. O que precisa fazer é uma regulação mais inteligente, que abra espaço para a inovação e não retirar a regulação.

Por Bianca Gomes e Pedro Prata

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